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O nascimento e a morte da hipocrisia




João Paulo Bittencourt Cardozo

Vice-presidente da UME Carazinho e trabalhador

da CE Joanna de Ângelis, de Sarandi



No terceiro número da Revista Espírita, publicado mês de março de 1858, em texto intitulado “Júpiter e alguns outros Mundos” (1), Allan Kardec destaca o impacto transformador do surgimento do bem na sociedade humana, quando nela passam a reencarnar, entre elementos maus, alguns Espíritos de segunda ordem, conforme a escala espírita. É um desdobramento deste tema, que fora trabalhado pelo Codificador no número anterior (2).

Para além da tendência de os bons em minoria passarem a ser perseguidos pelos maus, e da evolução coletiva que passa a acompanhar o progresso dos primeiros, ponderou o Codificador que “Desse mesmo bem nascerá outro vício. A despeito da guerra incessante que os maus declarem aos bons, não podem evitar que se estimem em seu foro íntimo; percebendo o ascendente da virtude sobre o vício, e não tendo força nem vontade de praticá-la, procuram parodiá-la; tomam-lhe a máscara; daí os hipócritas tão numerosos em toda sociedade onde a civilização é imperfeita”.

É o “nascimento” da hipocrisia. Quando numa civilização dominada pelos maus passam a existir bons, o bem é um ascendente tão forte, que se impõe por si, a superioridade da virtude sobre o vício é tão clara, que aqueles que não estão dispostos a adquiri-la passam a simulá-la, encená-la, tentando parecer bons em virtuosos para serem vistos e mantendo seus vícios e defeitos longe dos olhares que poderiam comprometê-los.

Quando se fala em maus e bons, não se está numa postura maniqueísta e simplista da divisão do Universo entre uns e outros, pensamento raso que atiça, por exemplo, o ódio nas redes sociais contra quem pensa diferente. Maus são aqueles que AINDA não se tornaram bons por força da evolução própria, são os impuros, levianos, pseudo-sábios e neutros, as classes da terceira ordem da escala espírita. Ninguém é irrecuperável. Maus somos ainda nós quando não bons o bastante para fazermos o bem, quando nos mantemos presos à classe dos neutros, que compõem a maioria nas coletividades atuais. 

O Evangelho do Cristo, em mais de uma passagem, define com precisão a hipocrisia que caracteriza a civilização imperfeita. “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia. Assim também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas interiormente estais cheios de hipocrisia e de iniquidade” (Mateus 23:27,28) (3)

No campo religioso ainda abundam as posturas de simular a virtude em atos exteriores rotineiros e a desprezar ao colocar o pé porta afora do templo. Mas não é somente na Religião que o tema da hipocrisia é palpitante. 

 A Revista Espírita de Outubro de 1860 volta ao tema, com a mensagem “A Hipocrisia”, de autoria do Espírito Lamennais (4).  Ele afirma que na Terra deveria haver dois campos bem distintos, o dos que fazem o bem e o dos que fazem o mal, mas não é bem assim: o homem não é franco nem mesmo no mal, pois tenta parecer virtuoso. “A hipocrisia, entendei bem, é o vício de vossa época; e quereis fazer-vos grandes pela hipocrisia! Em nome da liberdade, vos engrandeceis; em nome da moral, vos embruteceis; em nome da verdade, mentis”.  

E os tempos atuais, em que se substitui a pesquisa da verdade e a reflexão pelas narrativas fabricadas e aceitas sem questionamento, demonstram a atualidade da mensagem: a hipocrisia é o vício da nossa época. “Cristãos” livremente disseminam doutrinas francamente contrárias à Lei de Amor em que o Cristo baseou a totalidade de seus ensinamentos, dividem a Humanidade em compartimentos, estimulam o ódio e o preconceito. 

Mas se a hipocrisia teve nascimento em nosso globo, e ainda grassa encontrando palco perfeito nas novas mídias, também terá a sua morte entre nós. Desaparecerá do mundo quando perecer no íntimo de cada uma das criaturas.

É o futuro da Terra, quando nela habitarem somente Espíritos da segunda ordem da escala espírita. Diz-nos Kardec em seu texto citado no início: “A legislação aí é bem simples, porquanto os homens não têm necessidade de defender-se uns contra os outros; ninguém deseja o mal ao próximo, ninguém se apropria do que não lhe pertence, ninguém procura viver em detrimento de seu vizinho. Tudo respira benevolência e amor; os homens não procuram se prejudicar, não há ódio; o egoísmo é desconhecido e a hipocrisia não teria finalidade”.

Para que morra a hipocrisia, asfixiada por falta de finalidade, alguns direcionamentos parecem necessários.

Ao indivíduo ético, aí incluído o cristão, o esforço de tomar a iniciativa de praticar o bem, abandonando a velha postura insossa dos Espíritos neutros, condição comum da Humanidade, e com isso transpor de uma vez a fronteira da segunda ordem da escala espírita, a dos Espíritos bons.

E ao espírita em particular, relembrar que o ensino dos Espíritos é claro e sem equívocos, “(...) para que ninguém possa pretextar ignorância e para que TODOS POSSAM JULGAR E APRECIAR COM A RAZÃO” (Questão nº 627 de “O Livro dos Espíritos) (6). Abandonar a postura contemplativa que preocupava Deolindo Amorim, aquele estado de espírito em que não há o “crivo da razão”, em que muita gente fica predisposta a deformações, “(...) que começam por sintomas muito sutis, mas depois tomam corpo e causam muito prejuízo entre nós: a idolatria pessoal, a ‘adoração de guias’, o endeusamento de médiuns, e assim por diante. É uma atitude que revela ausência de espírito crítico” (7)

Que jamais, como espíritas, abramos mão do espírito crítico e da razão. Que, como cristãos ou no mínimo pessoas éticas, possamos nos descolar da massa indiferente e passar a praticar o bem verdadeiramente, como o Cristo exemplificou, selando nossa evolução própria e a evolução do globo. Deixando para trás de vez a espiritualidade formal e de rotina, a simulação de virtude que constitui hipocrisia, que cada um precisa identificar e matar em si.  

Se Allan Kardec em seu texto apontou o parto da hipocrisia na Terra, associando-o à reação dos maus à chegada dos bons, também deu o caminho para a sua morte em nosso mundo, que acontecerá quando o bem predominar de verdade.  Precisamos reconhecer que é uma tarefa de todos nós.

 


Referências:

(1) Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos: Ano primeiro – 1858/publicada sob a direção de Allan Kardec; [tradução de Evandro Noleto Bezerra; (poesias traduzidas por Inaldo Lacerda Lima)]. – 4. Ed. – Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005, p. 112-119.

(2) Trabalhada no número anterior da Revista Espírita, de Fevereiro de 1858.

(4) Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos: Ano terceiro – 1860/publicada sob a direção de Allan Kardec; [tradução de Evandro Noleto Bezerra; (poesias traduzidas por Inaldo Lacerda Lima)]. – 3. Ed. – Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005, p. 482.

(5) Obra citada no item 1.

(6) O livro dos espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados por Allan Kardec; [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013, p. 298-299. 

(7) AMORIM, DEOLINDO, 1906-1984. ATITUDES PERANTE O ESPIRITISMO. In RELEMBRANDO DEOLINDO – I / Deolindo Amorim, organização José Jorge. – Rio de Janeiro: CELD, 1994, p. 30-36.

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