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Colorindo Almas


A noite, com seu manto pontilhado de luzes, estava quieta.

A aragem mansa soprava de leve, como se beijasse com delicadeza o rio que seguia seu curso, impassível, sulcando a terra, contornando obstáculos e revigorando as margens cheias de tufos verdes e do colorido das mimosas flores silvestres que exalavam seu perfume adocicado.

Quedava-se, o pobre homem, a contemplar as águas, aconchegando-se ao cobertor esfarrapado, procurando um pouco de calor, em vão. Os inúmeros buracos já não impediam o ar da noite de fustigar-lhe os ossos.

Lembrava-se de um tempo que passou e do qual ele estava tão distante.

Ali, solitário, desprezado pelos transeuntes, olhado com desdém pelos que lhe atiravam moedas, rememorava o passado.

Também estivera do outro lado da ponte que lhe servia de abrigo e, contrariamente, aos que lhe deitavam migalhas, hoje, jamais percebera a miséria e a dor que se aninhavam nas ruas e consumiam tantas almas.

Sua trajetória brilhante, o sucesso, o luxo, os aplausos o entorpeceram, isolando-o em sua glória, retirando-lhe a sensibilidade para perceber alguém mais que não fosse a si mesmo.

Não se lembrava de ter alcançado uma esmola, por mínima fosse, para alguém que se aproximasse. Nem mesmo recordava se alguém, um dia, aproximou-se dele.

Quando surpreendido na queda, quando a traição o golpeou sem piedade estava tão só e tão sem recursos de qualquer monta que o sustentasse, que só lhe restou o abismo, o entorpecimento do álcool, a degradação moral.

Não tivera nem mesmo o consolo de sentir-se injustiçado. Não. Merecera mesmo tudo o que a vida lhe ofertara.

Agora, solitário. Sempre a solidão.

Contemplava a corrente que impassível segue o seu curso e pela primeira vez, chorava!

Suas lágrimas tinham o peso do arrependimento, primeiro passo para a renovação.

Ouvia, ao longe, o dobre de um sino que repicava como se lhe fizesse um convite para desvendar a alma e encontrar os talentos tão esquecidos.

Ergueu-se e enrolado no cobertor esfarrapado, deixou-se levar pelo som que lhe chegava, conduzindo-o até a velha igreja, onde vezes tantas mendigara à porta.

Agora ele a via tão diferente. Sentia que daquelas paredes seculares brotavam ecos que lhe impressionavam a estrutura íntima.

Na sua mente revia-se na infância, sua mãe, as missas aos domingos, o som do vetusto órgão, as vozes do coro.

Recordou-se das lições que recolhera dos lábios piedosos daquela que o educara e ouviu sua voz, soando no pórtico da sua alma.

- Filho! O amor cobre a multidão dos pecados!

- Ama e encontrarás o aprisco, pois nenhuma das ovelhas dele se perderá.

Sentia que seu corpo adquiria tamanha leveza como se pudesse flutuar. Sua visão dilatava-se e a rua deserta enchia-se de vida, de sons e de luzes.

Neste enlevo indescritível adormeceu no degrau próximo à porta, enquanto um belo espírito de mulher velou-lhe a noite até que a alva o despertou.

Sentindo-se com inefável alegria dirigiu-se ao abrigo de indigentes de onde fugira inúmeras vezes.

Meses depois, quem por ali passasse veria, no largo pátio da instituição centenária, um homem debruçado sobre telas e tintas, compondo paisagens, retratando a vida, ensinando outros cidadãos das ruas a expressarem nos quadros de mil matizes as belezas da Criação, como caminho de retorno Àquele que os criou.

MEB

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