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Siá Tonha cap. XXIV - Culpa e Libertação II



Sabeis se a Providência não vos escolheu, não como instrumento de suplício para agravar os sofrimentos do culpado, mas como o bálsamo da consolação para fazer cicatrizar as chagas que a sua justiça abrira? Não digais, pois, quando atingido um dos vossos irmãos: “É a Justiça de Deus, importa que siga o seu curso.” Dizei antes: “Vejamos que meios o Pai misericordioso me pôs ao alcance para suavizar o sofrimento do meu irmão. Vejamos se as minhas consolações morais, o meu amparo material ou meus conselhos poderão ajudá-lo a vencer essa prova com mais energia, paciência e resignação” [1]


O lusco fusco da aurora aquarelava a abóbada celeste. Vista do Alto, a cidade parecia uma tela pintada pelas mãos de um virtuose, mergulhada em um ninho suntuoso de claridades que o sol nascente patrocinava.

Antonia observava e dava asas aos seus pensamentos. Tantas lutas e dores que as criaturas enfrentavam em seus trajetos retificadores! Percebia que os sofrimentos na Terra não escolhiam classes sociais, raças, credos, mas se constituíam em peregrinos silenciosos levando a cada um o convite para a renovação de hábitos no pensar e no agir. Os sofrimentos morais que identificava nos palacetes, onde muitas vezes adentravam para socorrer o desespero, eram tão densos quanto os que desfilavam ao relento nas ruas e nos casebres humildes. Tinham eles a gênese comum onde se divisavam as faces do orgulho e do egoísmo.

Poucos seres tinham a disposição de dar, de servir; de outra banda, muitos carregavam a certeza de serem merecedores de tudo o que desejavam para si. Foram nestas reflexões que Antonia começou a sentir, timidamente, que gostaria de ter mais recursos, quando lhe fosse oportunizada uma nova chance de mergulho na carne, e assim contribuir para minorar as mazelas que vergastavam as vidas humanas.

Sempre tivera uma resistência hercúlea em relação à posse da riqueza. A sua condição espiritual de poder se apresentar como uma andarilha era-lhe muito prazerosa. Sentia-se feliz com a aparência simples, com o traje muito modesto e a fisionomia que revelava a benzedeira de fundo de campo, que fora na última trilha reencarnatória. Mas também verificava que muitas das misérias, às quais atendia, podiam ser atenuadas se existissem, no mundo, corações mais generosos.

Em meio a estas meditações percebeu a presença de Sepé e lembrou-se da última conversa que tiveram e na qual ele lhe dizia ser a riqueza uma prova duríssima, que requer fortaleza moral para a criatura vencê-la, e por esta razão é uma das escolhas do Espírito, que requer um planejamento reencarnatório mais complexo e uma preparação mais intensa para a volta ao mundo material.

- É verdade Antonia, disse o venerando amigo penetrando os pensamentos da sua tutelada, vencer a prova da riqueza demanda um grande esforço e rígidas disciplinas morais.

- Fico pensando, bravo irmão, porque tanta falência nesses labores se a preparação é meticulosa e há tantos cuidados na composição do plano de renascimento das almas incursas em tais provas?

- A riqueza é um facilitador das paixões, Antonia! Os recursos materiais abrem todas as portas para o progresso da inteligência e como sabeis as paixões multiplicam exponencialmente as forças humanas, o que requer um freio moral severo para que essas forças se dirijam ao bem.

- Todos os talentos são riquezas, então podes mensurar por ti o que estou a dizer. Se tu empregares essa força curadora que tens para produzires o mal, já imaginaste o poder devastador desse magnetismo se associado a almas devotadas ao crime? As grandes fortunas materiais ou espirituais são destinadas a propiciar grandes benefícios na Terra, mas se a paixão que se lhes agrega for mal conduzida, causam estragos de monta, quer seja pela ação desastrada ou pela omissão criminosa.

Os dois amigos ergueram-se. Estava na hora de partir em missões socorristas.


.........


Alírio descia a ladeira íngreme rumo à pensão onde morava Anacleto. Após muito pensar, iria propor ao amigo um remédio amargo, mas tinha a certeza de que seria a única maneira de libertá-lo daquela aflição que o consumia. Inspirado por Antonia, que tomara a seu encargo a orientação daquela alma, contando com a sensibilidade do valoroso médico, seguia determinado.

Quando adentrou o tugúrio muitas pessoas vieram-lhe ao encontro buscando atendimento médico. O alvoroço chamou a atenção de Anacleto que irrompeu no local tentando afastar os consulentes, do amigo, na intenção de protegê-lo, ao que Alírio interveio acalmando-o e dizendo que atenderia a todos na medida do possível. Ficou algum tempo examinando, orientando, conversando com os abrigados. Depois, convidou Anacleto e saíram juntos, caminhando sem pressa, margeando o rio até encontrarem um local tranquilo onde Alírio tomou assento, convidando o companheiro a fazer o mesmo.

- Sabes Anacleto, tenho lido o Livro que me apresentaste. Comprei, ou melhor, ganhei um exemplar. Até te trouxe outro aqui, pois vi que o teu estava em péssimo estado.

- O Senhor tem lido? Verdade?

- Sim, e confesso que me aclarou muitas coisas, da minha vida, da vida enfim. Penso hoje que tem riquezas que nós desperdiçamos e não recuperaremos tão cedo, mas têm outras que ficam intactas e que ninguém no-las retira. Nós é que as escondemos de nós mesmos.

Anacleto olhava intrigado para o seu amigo médico.

- Eu perdi todas, doutor, não vou recuperar nenhuma. Eu também leio esse livro e por vezes fico muito perturbado com o que entendo dali. Sempre achei culpados para a minha situação, odiei, desprezei quem me reduziu a isto. Mas quando leio sobre reencarnação, destino, fatalidade, fica muito difícil, porque tudo isto fica sem razão de ser e eu pareço ser o responsável por tudo.

- E então?

- E então não sei! Tudo estava tão definido na minha cabeça. Eu era uma vítima, fui traído e eu fui mesmo. Mas tem uma passagem que me causa muita agonia quando eu leio. Tenho-a decorada, tanto que eu a releio e ela fica como se fosse um chicote, estalando na minha cabeça.

“A misericórdia é o complemento da brandura, porquanto aquele que não for misericordioso não poderá ser brando, nem pacífico. Ela consiste no esquecimento e no perdão das ofensas. O ódio e o rancor denotam alma sem elevação, nem grandeza. O esquecimento das ofensas é próprio da alma elevada, que paira acima dos golpes que lhe possam desferir. Uma é sempre ansiosa, de sombria suscetibilidade e cheia de fel; a outra é calma, plena de mansidão e caridade

Ai daquele que diz: nunca perdoarei. Esse, se não for condenado pelos homens, certamente o será por Deus. Com que direito reclamaria o perdão de suas próprias faltas, se ele mesmo não perdoa as dos outros? Jesus nos ensina que a misericórdia não deve ter limites, quando diz que cada um perdoe ao seu irmão, não sete vezes, mas setenta vezes sete vezes.”[2]



- Você está necessitado de perdão, é isso que você quer dizer? Mas essa compreensão é muito boa, meu amigo.

- Eu nunca acreditei nestas coisas de inferno, demônio, sempre achei uma falácia para amedrontar o povo, mas neste livro tem lições que são lógicas, não é misticismo. Outro dia eu vi minha mãe, acho que foi um sonho, mas muito real. Ela pedia que eu procurasse as minhas filhas, que era um pedido dela e do Neto. E desde esse dia eu fiquei mais aflito, porque me imagino encontrando com a minha mãe, com o meu filho e pedindo perdão a eles e não sendo ouvido.

- E por que você acha que eles não te perdoariam?

- É como diz a prece.[3] Nós somos perdoados na medida em que perdoamos. E eu não consigo Doutor.

- Como você sabe que não consegue? Você já fez algum movimento nesse sentido? Na verdade, o que você tem que perdoar? Quem você tem que perdoar? Seus filhos?

- Claro que não, mas eu terei que me aproximar daquele canalha que me tomou tudo. Talvez eles nem me reconheçam, ou se me reconhecerem me rejeitem. Eu já tenho dores suficientes, doutor, não vou buscar mais.

- Anacleto, eu acho que cultivar a doença não é o melhor caminho para abrandar dores, meu amigo. Olhe os doentes que você tem me auxiliado a localizar e atender- quanto mais tempo ficam sem a medicação mais o estado deles e as dores se agravam – você está agravando o seu sofrimento. Você está se auto punindo, se condenando.

Alírio observava o rosto em crispação do interlocutor, a respiração que começava a ficar ofegante e julgou melhor encerrar o assunto, com receio de desencadear uma síncope nervosa no pobre homem. Ergue-se e o convidou, para andarem um pouco mais, no que foi atendido. Andaram alguns passos e Anacleto parou.

- O Senhor tem razão Doutor! Seja o que Deus quiser!

Antes que Alírio esboçasse qualquer reação, ele voltou-se e saiu quase correndo.

- Hei, hei homem, espere! Aonde você vai? Deixe-me ajudá-lo.

- Não doutor, Isto é comigo, só comigo!

- Meu Deus! O que eu fiz? Tomara que ele não faça nenhuma loucura.

A aflição do médico foi logo se acalmando pela intervenção de Siá Tonha, que acompanhara o diálogo e fora sensibilizando o coração de Anacleto. O Evangelho de Jesus e seus discípulos em ambos as dimensões da vida continuavam promovendo a transformação das criaturas.



Referências: [1] Kardec . Allan.O evangelho segundo o espiritismo. Cap V, item 27. [2] O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo X - Bem-aventurados os que são misericordiosos. Item 4. FEB Editora [3] Pai Nosso

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