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Acolher e Consolar - Siá Tonha Cap. XIX


A verdadeira caridade não consiste apenas na esmola que dais, nem, mesmo, nas palavras de consolação que lhe aditeis. Não, não é apenas isso o que Deus exige de vós. A caridade sublime, que Jesus ensinou, também consiste na benevolência de que useis sempre e em todas as coisas para com o vosso próximo. Podeis ainda exercitar essa virtude sublime com relação a seres para os quais nenhuma utilidade terão as vossas esmolas, mas que algumas palavras de consolo, de encorajamento, de amor, conduzirão ao Senhor supremo. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo XI, 14

Anacleto vivia há muito tempo na rua. A doença mental, que por vezes o tornava agressivo e intratável, porém sem fazer com que chegasse às vias de fato, deixava-o com incontinência verbal, o que o fizera perder muitos empregos e isto acabou levando-o ao exílio familiar. Àquele tempo, por ignorância sobre as enfermidades hoje tão conhecidas, o rotularam de ingrato, vagabundo e tantos outros adjetivos que ele recolheu com muita dor e fez deles os seus companheiros de infortúnio.

Improvisou um miserável refúgio longe da cidade, mas o crescimento da capital foi encontrá-lo. Viu se abrirem as ruas, chegarem os loteamentos, erguerem-se os prédios e muitas vezes ele foi mudando o seu paradeiro, até que a construção da ponte brindou-lhe com um vão seguro sob ela, onde se estabeleceu sem ser molestado.

A vizinhança era de gente boa. Olhavam-no com desconfiança, primeiramente, depois se aproximaram para dar-lhe comida, roupas e, num dia, Siá Tonha, orientada por Sepé, foi encarregar-se daquela alma, batida pelos muitos sofrimentos gerados pelas guerras que recortaram o sul do Brasil e que deixaram sulcos e desacertos profundos em decorrência das vivências nefandas no grande conflito.

Anacleto fora, em anterior existência, degolador afamado a soldo dos grandes mandatários de terras, que alargavam os seus domínios ordenando a morte daqueles que estavam em seu caminho.

Nos acessos de loucura que tinha agora se sentia acossado por almas que o acusavam e nestes episódios corria, por horas a fio, sem parar, quando então era socorrido por alguém que o levava a algum posto médico, onde aplicavam-lhe medicações para acalmá-lo e ficavam por aí os cuidados com aquela criatura.

Era “o louco da ponte” como diziam, mas um louco tranquilo na maioria das vezes, assim Anacleto era conhecido.

- Antonia, leve um médico até Anacleto, falou Sepé projetando, na tela mental da servidora, a localização precisa do alvo de seu atendimento e entregou-lhe, ato contínuo, as especificações do facultativo da Terra com o qual Siá Tonha avistar-se-ia para intuir à tarefa.

... A cidade amanhecera com a calmaria peculiar aos domingos. O sono reparador das atividades da semana mantinha as pessoas ainda recolhidas às suas casas e raros transeuntes aproveitavam a brisa cálida da manhã primaveril para o passeio nas ruas e parques citadinos.

O médico Alírio arrumou os seus instrumentos na valise, juntou alguns medicamentos e materiais de primeiros socorros e preparou-se para sair para o lado leste da cidade, para onde não costumava transitar em sua ronda semanal em busca dos desafortunados da rua.

Chamou-lhe a atenção uma tosse convulsiva, que denotava alguém em apuros ob a ponte que ele atravessava naquele momento. Parou e buscou identificar um acesso por onde pudesse descer e encontrou uma escada escavada no terreno, certamente esculpida pelo morador daquele abrigo.

Desceu e viu, protegido pelo primeiro pilar do pontilhão, um homem encolhido no meio de alguns cobertores ralos e sujos. Aproximou-se e a criatura, em meio à tosse que prosseguia abriu um pouco mais os olhos brilhantes que denotavam o estado febril e com dificuldade, a voz entrecortada, perguntou:

- Quem é o Senhor?

A escuridão no desvão onde se abrigava era quase completa o que fez Alírio acionar a pequena lanterna que sempre carregava consigo, voltando-a para si, a fim de que o morador o visse.

- Sou um médico. Ouvi sua tosse. Posso ajudar?

- Um médico – falou Anacleto, entre surpreso e descrente - quem o mandou aqui?

- Sim, eu faço isso todos os domingos e hoje caminhei para estes lados. Agora percebo que devia vir mesmo para estes sítios, pois estás precisando de auxílio, meu amigo...?

- Anacleto, meu nome é... não conseguiu terminar dado ao acesso de tosse.

Alírio ajoelhou-se ao lado do enfermo e foi abrindo sua maleta. Sob a luz da lanterna foi identificando os utensílios para verificar o estado físico, temperatura, batimentos , fazendo a anamnese possível ali naquele tugúrio.

Administrou alguns medicamentos e perguntou a Anacleto.

- Posso levá-lo ao hospital? Você está com pneumonia e pode morrer aqui.

_ Ah! Doutor, seria uma bênção morrer, acabar de uma vez por todas com essa vida miserável, sem sentido.

- Você tem algum familiar, meu amigo, alguém que você lembre?

- Tenho sim, mas há muitos anos que não os vejo, não sei deles. Na verdade, tenho ninguém, doutor.

- Compreendo! Mas deixe-me cuidar de você, talvez a vida ainda lhe reserve boas surpresas. Tenho assistido muitas mudanças nessas peregrinações entre os sofredores do mundo.

- Depois, Anacleto, não precisa sofrer tanto para morrer, meu amigo.

- O mendigo sorriu tristemente e voltou a dobrar-se sobre si mesmo com a violência da tosse.

- Vou buscar ajuda! Você deixa?

Alírio o removeria de qualquer maneira, mas sabia que estas pessoas que perdem os vínculos familiares, que estão na rua despojados de tudo, guardam, não raro, como último bastião de dignidade a sua vontade e a liberdade de dizer não, por isso o esforço em cooptar o assentimento do doente.

- Sabe, Anacleto, eu tenho muitos amigos como você, mas preciso de muitos outros. Quer ser meu amigo?

- Ora, Doutor, o que alguém como o senhor vai fazer com um amigo como eu?

- Aprender, Anacleto. Aprender! Quantas coisas você tem visto, vivido que eu sequer imagino que exista. Tenho ouvido histórias nas minhas caminhadas e tenho realizado algum trabalho que têm feito de mim um homem melhor.

O enfermo ouvia, aproveitando o alívio que a medicação ministrada por Alírio, somada com as emanações do atendimento de Siá Tonha, que se utilizava dos fluídos curadores do médico, proporcionavam naquele momento.

Alírio continuava:

-Eu também, já tive momentos em que pensei em desistir da vida, sabes?

- O senhor? Mas porque um homem instruído, bem de vida, vai querer morrer? Anacleto expressava um misto de curiosidade e incredulidade.

- O médico anuviou a face e disse como se estivesse vendo cenas que lhe traziam desconforto.

- Posso lhe contar essa história lá, no hospital, quando você estiver melhor. O que me diz?

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