Siá Tonha cap. XXX - O passado se faz presente
Lucélia tinha chegado à fazenda logo após o almoço. Junto com Viriata acomodara os meninos e se instalou na ampla varanda para contemplar o sol poente, um espetáculo que a deslumbrava sempre quando estava lá.
No tempo dos sogros e de Anacleto não vinha muito à estância, pois se sentia espezinhada pela sua origem e pela condição antes do casamento. Nunca fora bem aceita pela família. Ademais Anacleto tinha verdadeira ojeriza pela vida campesina e isto a distanciou daquele paraíso, que nos últimos meses tinha se convertido em refúgio e também em local de refazimento e paz em meio a tantas lutas que vinha enfrentando.
Desde que descobrira as artimanhas do amante, deflagrou-se uma guerra onde ela empenhava todas as suas forças para que ele não tomasse conta do patrimônio que era dos seus filhos.
Perdera muito dinheiro para saldar as dívidas deixadas pelo marido, mas conseguira manter o casarão e a fazenda. Tivera que aprender a gerir os negócios para que tomasse a decisão que ora estava prestes a consumar.
Afastaria Antonio Pedro definitivamente da convivência com a sua família. Estava ali para repousar e pensar com clareza. No domingo ao retornar para a cidade poria seu plano em execução.
O que Lucélia não sabia era que um dos seus advogados, com quem ela consultara sobre certas questões e deixara claras as suas intenções, já havia anunciado, ao administrador, as decisões dela. Sabendo desses propósitos o ambicioso e maquiavélico homem traçou ou seus planos.
Olhando as campinas verdes e o contorno do Cerro da Cruz, que se elevava no horizonte, sentiu um aperto no peito, que fê-la exalar profundo suspiro, acompanhado de lágrimas que começaram a descer em bagas pela face.
A infeliz dama não percebia, mas Espíritos ameaçadores perambulavam pela varanda, emitindo miasmas de ódio e vingança. Um deles apresentava uma cicatriz em forma de cruz na face esquerda de onde saiam líquidos purulentos que lhe empastavam a roupa. Esse ser arremetia furioso contra a mulher, que identificava na sua tela mental os sentimentos nefastos, os quais ela traduzia na reação de choro convulsivo.
Os invasores das reduções jesuíticas continuavam a se digladiar, imersos nas sombras dos seus erros até que a luz do Evangelho pudesse descerrar os corações a novas e redentoras visões.
Naquela noite, Antonio Pedro chegou à Fazenda, quando Lucélia estava se recolhendo para dormir. Ela não gostou da presença dele ali, até porque havia deixado expresso que queria ficar a sós com os filhos até o final da semana. Ele desconversou dizendo que precisava de alguns documentos para uma transação de gado com um frigorífico paulista e que logo cedo iria embora.
No meio da noite, Lucélia acordou com Antonio Pedro dentro do seu quarto, um homem morto e esfaqueado no chão, ela com as mãos sujas de sangue e uma faca ao lado do cadáver.
Sua cabeça está muito confusa, pesada, ela mal consegue pronunciar as palavras. Aos poucos as coisas vão ficando mais claras e ela percebe que se trata de um crime ocorrido ali, mas ela não entende. Quem é aquele homem? Ela nunca o vira antes, e não recorda de nada. Sua última lembrança foi de estar sentada na cama e sentir muito sono. Muito sono.
- Você é uma assassina, Lucélia!
- Não, eu não fiz isto!
-Por isto não me queria na Fazenda, por isso ia me mandar embora!
-Não! Mas o que você está dizendo?
- Eu vou chamar a polícia, você vai para a cadeia, sua criminosa!
Em instantes, Lucélia percebeu que caíra em uma armadilha e revidou com toda a força que conseguiu arregimentar, pois sentia-se entorpecida. Não sabia, mas Antonio Pedro havia colocado uma dose de sonífero no suco consumido no jantar. Em verdade ele chegara bem cedo à fazenda sem se fazer notar ou anunciar.
- Eu não matei esse homem! Você o matou, miserável!
- Eu? O administrador sorria ironicamente.
- Está vendo essa faca – apontava para o chão – ali estão as suas impressões digitais.
- Raimundo, Raimundo!
- O assessor de Antonio Pedro, com o qual Lucélia nunca simpatizou, adentrou ao quarto.
- Você poderia nos dizer Raimundo o que aconteceu aqui?
- Sim, patrão! Eu ouvi um homem pedindo socorro e quando cheguei aqui vi Dona Lucélia com a faca ensanguentada na mão.
A pobre mulher viu que não tinha como vencer aquele conluio criminoso que a colhera em suas malhas.
Tinha perdido a luta para aquele monstro. Como ela o odiava! Como não percebera, desde o início que ele nunca quis ajudá-la!
- Chame a polícia, vá! Tentou num último arroubo mostrar que não tinha medo que não se renderia.
- Lucélia, eu não quero o seu mal, mas você me obrigou a isto. Podíamos ter vivido bem, se você confiasse em mim. Eu trabalhei muito, fiz tudo para assegurar que aquele bêbado não os deixassem na miséria, mas você nunca reconheceu o meu valor.
- Eu posso dar um jeito no que houve aqui! Desde que você vá embora e não volte nunca mais.
- Você enlouqueceu! Eu não vou deixar os meus filhos, dizia a pobre mulher em pranto.
- Se você for presa vai deixá-los da mesma maneira e ainda envergonhá-los. Filhos de uma adúltera e assassina.
- Eu não vou deixar você ficar com o que é dos meus filhos.
- Nem posso. Eles são menores! Mas eu vou cuidar deles, eu lhe prometo.
- Suma daqui agora e nada vai lhe acontecer, ou você fica e vai morrer na cadeia.
- Lucélia viu o chão fugir aos seus pés, era um pesadelo o que estava vivendo. Implorou, ajoelhou-se diante de Antonio Pedro. Ele sabia que aquilo era uma mentira. Ele devia ter matado ou mandado matar aquele pobre homem que ela nem sabia quem era.
Viriata, pensou! Sim ela está na casa. Sabe que eu não matei ninguém.
Fez um gesto para sair em busca da serviçal, mas foi impedida pelo brutamontes Raimundo.
- Chame a polícia, Raimundo, disse Antonio Pedro, vamos terminar com isto.
- Não, espere! Espere!
Lucélia nem pode se despedir dos filhos. Assinou a confissão que o administrador lhe estendeu. Confessava um crime que não cometera, louvando-se na palavra de um mau caráter, de que não a denunciaria. Pegou o dinheiro que ele lhe dera e saiu no meio da noite, levada por Raimundo que a entregou a outro motorista que a levaria embora da cidade.
O homem que a conduziria era um velho conhecido da moça, dos tempos em dançava numa das boates citadinas. Diante do choro convulsivo da mulher, ele teve compaixão. Parou o carro, estendeu-lhe um lenço e disse:
- Parece que a vida lhe deu um tombo, moça, mais um.
Ela lembrou que precisava ainda garantir a segurança dos filhos e lembrou de Ieda, sua amiga e confidente.
Perguntou ao motorista:
- O Senhor tem filhos?
- Sim, tenho três.
- Então vais me entender. Minha vida nada mais vale. Não tenho mais razão para viver a não ser garantir o futuro dos meus filhos. Por isso eu lhe peço. Deixe-me voltar à cidade por alguns instantes, preciso escrever uma carta e entregar à uma amiga.
Ele tinha recebido um serviço e queria se desincumbir dele.
- Por favor! É uma mãe aflita que lhe pede. Estacione na praça, em meia hora eu volto, eu lhe prometo.
Lucélia tinha como entrar no casarão. Apanhou as suas jóias, mais algum dinheiro que guardava e escreveu uma carta para a amiga Ieda. Entregou a missiva, sem maiores explicações e foi embora cumprir o seu destino.
As dores, as quedas, a sequência de infortúnios, tudo estava na carta que Anacleto lia agora. Aquela mulher supliciara-se, dia após dia, desde que abandonara os filhos. Narrava o seu martírio, a saudade dos filhos, a amargura que a consumira. Nunca mais se reerguera. Trazia uma dor imensa consigo, mesclada com o ódio, com a mágoa, sentimentos que repassou aos relacionamentos afetivos, amizades, a todos com quem cruzou no seu caminho desde então.
Morrera na mais absoluta miséria e solidão.
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