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O pai, o terceiro andar (parte 1)




Não devias ter envelhecido antes de ficares sábio.

Shakespeare, Rei Lear

 

Pais saudáveis desejam que os filhos os superem. É da natureza a necessidade de continuidade e progresso. Seria uma degradação evolutiva que os filhos perdessem qualidades à medida que as gerações fossem se renovando. Espera-se que as gerações seguintes possam ser melhores que as anteriores.

Assim também na evolução do pensamento cultural. Embalados pela lei de progresso, todos nos movemos na direção de avanços intelecto-morais. Esses avanços são lentos, às vezes imperceptíveis. Via de regra os progressos intelectuais antecedem os morais.

A Doutrina Espírita nos fala em revelações divinas sucessivas, na nossa cultura ocidental. A primeira foi Moisés, através dos ensinamentos morais de suas leis e do ingresso no monoteísmo. A segunda revelação foi Jesus, com a ampliação dos conceitos de Moisés e a suprema noção do amor universal, mas ainda não poderia falar sobre tudo, tendo em vista o estado rudimentar da humanidade, sobretudo pelas condições intelectuais ao seu tempo. Promete o Consolador, e a terceira revelação vem no formato de uma Doutrina que não está personificada e, por isso, pode permanecer eternamente conosco, como Ele próprio asseverou.

Em Moisés temos a predominância absoluta do patriarcado. A noção de Deus-Pai único e onipotente inicia uma maneira de pensar a fé e a religiosidade, no contexto cultural. O Deus de Moisés parece mais o senhor de um exército, implacável ainda que justo.

Praticamente não há a presença de mulheres influentes nas descrições bíblicas, ao tempo de Moisés. Deus é um ser temido que pune e premia, que se aborrece facilmente e que determina castigos severos exigindo obediência irrestrita. Sobre Moisés, Freud dedica uma obra de estudos, e em seu "Moisés e o monoteísmo" dirá:

 

É um monoteísmo rígido em grande escala: há apenas um só Deus, ele é o único Deus, onipotente, inaproximável; seu aspecto é mais do que os olhos humanos podem tolerar, nenhuma imagem dele deve ser feita, mesmo seu nome não pode ser pronunciado. (Freud, S. Moisés e o monoteísmo. Ed standard brasileiras das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 23, pág. 30. Imago. Rio de janeiro. 1996

 

Possivelmente encontraremos em Moisés importantes aspectos emocionais determinados por sua grande rigidez emocional e de caráter, mediante às quais ele apresentará um Deus baseado em suas próprias características, por mecanismos projetivos.

Ainda em Freud temos:

 

O próprio relato bíblico atribui a Moisés certas características, às quais pode-se muito bem dar crédito. Descreve-o como sendo de natureza irascível, a encolerizar-se facilmente, tal como quando, indignado, matou o brutal feitor que estava maltratando um trabalhador judeu, ou quando, em sua ira pela apostasia do povo, quebrou as tábuas da Lei que trouxera do Monte de Deus (Sinai). (Freud, S. Moisés e o monoteísmo. Ed standard brasileiras das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 23, pág. 44. Imago. Rio de janeiro. 1996


Em Jesus surge o coração, sobretudo o coração do feminino. Ainda que em Jesus encontremos a austeridade e a firmeza em muitas circunstâncias, em regime de equilíbrio na sua personalidade.

A presença de Sua mãe amorosa, Maria, que ameniza a rudeza do período anterior, é uma marca inaugural do novo momento de espiritualidade para o mundo. Temos no cristianismo a figura da Mãe Santíssima. Mais do que uma personagem bíblica, ela representa a presença de uma nova maneira de concebermos a divindade e a nós mesmos. O Deus de Jesus nos é apresentado pelo sentimento, sobretudo pelo maior de todos, o amor. Não há amor sem a presença do feminino.

Moisés nos apresenta leis e mandamentos.

Jesus acrescenta o coração.

Mais adiante falaremos sobre o significado afetivo e psíquico do espiritismo, que é a síntese e, ao mesmo tempo, uma nova cosmovisão que agrega todos esses significados.

Jesus é o modelo e guia para a humanidade. Nunca houve um ser humano como ele, mas poderá haver, pois não se colocou como inatingível.

Essa é uma questão delicada e instigante.

Na pergunta 625 de O Livro dos Espíritos Kardec faz a seguinte indagação:


Qual o tipo mais perfeito que Deus tem oferecido ao homem, para lhe servir de guia e modelo?

“Jesus”. (KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 93. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2013.

 

Se Jesus é modelo para o humano, é porque ele foi um ser humano. Nasceu como qualquer um de nós. Também teve uma mãe que lhe protegeu, alimentou e o amou suficientemente bem, ao ponto de proporcionar-lhe a experiência materno infantil que Ele necessitava.

Teve um pai que lhe foi suficientemente bom, também. Acompanhou o ofício paterno na dignidade da carpintaria.

Viveu em torno da sua família por trinta anos e depois por três anos nos ensinou o conceito de família universal. Chama a atenção o tempo que Jesus dedica em sua vida para a missão de transmissão do seu Evangelho e o período que fica próximo à família de origem. Parece nos ensinar muito através dessa lição sem palavras, algo da ordem da necessidade da família na estruturação nuclear da personalidade e do desenvolvimento de valores.

Quando sai de casa para o mundo, cria um novo conceito, o da família universal e estabelece no mundo a sua nova casa. Talvez a mesma que tenha edificado dentro dele no período anterior. Mas, isso são elucubrações nossas para instigar nosso pensamento.

Mas, voltemos à Parábola dos Dois Irmãos.

Essa é uma parábola de homens. Não aparece a presença da mãe ou de qualquer figura feminina. Compreensível para o contexto cultural da época que ensinamentos morais repousassem em representantes masculinos. Afinal de contas, como vimos, esse é o momento em que ainda se vivia sob a dominância do pensamento judaico. É o período no qual o espírito de Moisés é o grande regente.

No entanto, encontramos algo peculiar na atitude interna do pai. Ele não é um patriarca comum. Apresenta algo diferente na sua atitude, há nele uma expressão mais condizente com o que se espera de uma mãe, ou de um coração maternal. Ele deixa de ser “o patriarca” e procede como um coração afetuoso e sensível. Poderíamos dizer que esse homem só foi nobre porque enterneceu seu coração como uma mãe o faria.

Estamos falando do feminino “no masculino”.

Jesus era assim também. Frequentemente harmonizava o amor de uma mãe com a firmeza de um pai. Uma bissexualidade integrada no psíquico, de alta grandeza. Estamos longe de compreender a natureza íntima do Cristo, mas podemos conjecturar. O pai do filho pródigo é uma figura apresentada por Jesus para nos servir de modelo também. Um pai que se enternece. Ele representa o que se espera de um pai, ou mesmo de qualquer ser humano que é capaz de acolher o filho que volta em uma condição que lhe força ser alguém diferente do que sempre foi.

Os pais de hoje sofrem muito quando o filho pródigo dos nossos dias é um filho que apresenta alguma condição que destoa do que os pais esperam dele, sobretudo quando está envolvida a questão de gênero e que revela sua condição na família e necessita ser compreendido e acolhido. Há pais que se desesperam e reagem muito negativamente diante de condições que revelam diferenças.

A Parábola dos Dois Irmãos é para esses também. Normalmente, as mães lidam melhor com as diferenças entre pais e filhos. Talvez por isso Jesus propõe uma parábola de homens, para nos ensinar qual é a condição interna que se espera de qualquer ser humano, e no caso da figura masculina, diante de um impasse que somente será devidamente encaminhado se dentro dele houver um colo materno.

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