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O Julius cap. 9



167. Qual o fim objetivado com a reencarnação?

“Expiação, melhoria progressiva da humanidade. Sem isto, onde a justiça?” [1]

A chuva torrencial mais uma vez provocava um cenário caótico na “cidade maravilhosa”. A tarde de calor intenso se transformara, no crepúsculo, em um cenário com céu cor de chumbo, nuvens ameaçadoras e relâmpagos que riscavam o firmamento. O vento uivava dobrando as árvores coníferas que resistiam bravamente à intempérie colossal.

Marcela tinha pânico de temporais. Desde criança as tempestades eram para ela motivo de angústia, que chegava ao pavor. Quando o som dos primeiros trovões sacudiu a casa ela sentiu o líquido quente encharcar-lhe as roupas e escorrer pelas pernas. A bolsa amniótica rompera. Marcela sabia do que se tratava, apesar de ser a sua primeira gravidez, já socorrera muitas companheiras de trabalho e mulheres da própria favela nestas situações. As contrações se iniciaram. Ainda faltavam seis semanas para a data provável, mas o estado emocional precipitara o nascimento. Julius estava chegando ao mundo.

Donatto estava de plantão e aconselhou Ivone a chamar um táxi para chegar ao hospital, pois as ambulâncias não alcançariam a tempo de promover a remoção, devido à chuvarada inclemente.

O motorista buscava todos os atalhos que conhecia, enquanto Marcela prorrompia em gritos de dor a cada nova e mais forte contração. O engarrafamento se adensava até que o táxi não avançou mais. O barulho ensurdecedor das buzinas misturava-se aos estrondos da procela.

- Ivone, eu vou morrer, eu não quero morrer, por favor. Ajuda-me!

- Fique calma minha filha! Você não vai morrer. O seu filho vai nascer só isto.

Ivone era uma mulher forte e determinada. Ao sair de casa com Marcela pegou uma tesoura e duas toalhas porque não sabia o que poderia acontecer... e aconteceu. Avisou Donato da localização do taxi, deitou Marcela no banco traseiro do carro, ante os olhos apavorados do motorista, e ajudou Julius a vir ao mundo. Quando a chuva amainou, a ambulância abriu caminho entre os carros que começavam a se espalhar tomando os seus rumos. O menino chorava forte e a mãe aliviada, contemplava o pequenino ser que colocara no mundo, experimentando, pela primeira vez, um sentimento novo que jamais tivera por qualquer criatura até então.

...

Na manhã primaveril se desenvolvia a reunião semanal. O grupo mediúnico recebia através de Isabel a notícia de que, na noite anterior, ela tivera a visão do nascimento de Julius, reproduzindo os detalhes, que ainda lembrava, do fato tão emocionante e ao mesmo tempo angustioso. Sentira-se, durante todo o tempo ao lado de Ivone, como se estivesse doando fluidos magnéticos para a parturiente e para o nascituro. Seu amigo Julius voltava ao palco das lutas terrenas.

A reencarnação é o clímax da bondade e da misericórdia divina. Ali estava a alma que experimentara e forjara as dores da Inconfidência Mineira e da guerrilha do Araguaia, renascendo em meio aos que sofreram os reflexos das suas escolhas e que o amaram, sofreram-lhe a ausência e a saudade.

Donato, que até então não tivera nenhuma inclinação para o casamento, embora o relacionamento de longa data com Lavínia, uma enfermeira que conhecera ainda na época da faculdade, aproximou-se de Marcela cuja gravidez despertou-lhe um misto de desejo de proteção e ternura, que foi se confundindo, ao longo do tempo, com algo maior, até que se declarou apaixonado pela mãe do seu sobrinho.

Marcela não estava afeita a tantos cuidados, nem a se relacionar com pessoas que não fossem do mundo do crime. Embora não sentisse atração pelo “cunhado”, se deixou envolver pelas atenções, presentes e carinho que recebia.

Assim Julius foi crescendo, com os cuidados da mãe que fora finalmente cativada pelo pequeno, com a vigilância amorosa da avó e do tio que assumira o lugar da figura paterna.

O restabelecimento de Luigi na colônia de recuperação para onde fora levado se processava com algumas vindas ao grupo mediúnico, onde através de Isabel estabelecia diálogos que lhe permitiam extravasar a revolta que nutria.

Após a descrição do parto do Julius, os amigos dirigentes espirituais o trouxeram para dar-lhe a notícia com o objetivo de sensibilizá-lo para novos cometimentos.

Identificavam em Luigi uma via de acesso para o início da regeneração: o amor pelo filho. Eram almas afins. Desde a Conjuração nas Minas Gerais, onde sonharam juntos o ideal de liberdade, embora tenham seguido caminhos diferentes, o embrião dos sentimentos da amizade sincera entre eles sobreviveu.

Muitas vezes ele era aproximado para assistir o Evangelho feito pela médium, diariamente, e quando ela o percebia, intuitivamente, comentava mentalmente as passagens lidas, lembrando as lutas e necessidades que ele precisava superar para auxiliar o filho, mesmo estando desencarnado, porque esta era a única ideia que ele acolhia com facilidade.

Julius foi conectado ao aparelho mediúnico de Isabel e a corrente mental de ambos se interpenetrou, fazendo com que as imagens do nascimento do filho fossem sendo transmitidas perispírito a perispírito, mente a mente para o comunicante.

- Meu filho! Meu filho! Como eu queria poder te segurar no meu colo. Meu filho! Eu teria mudado a minha vida, só para poder estar contigo.

O Espírito soluçava inconsolável. O dialogador foi envolvendo-o com a energia firme, mas amorosa, sinalizando que Deus sempre concede aos seus filhos chances de transformação e de construção de dias melhores.

- Sou um bandido! Não tenho perdão!

Isabel após longos meses de convivência com o ex-traficante já conhecia um pouco da estrutura emocional daquela alma. Tinha uma perversidade muito grande, desenvolvida como mecanismo de proteção, mas também pela interpretação equivocada das provas que a vida lhe oportunizou. Encenava, muitas vezes, a figura do perseguido pela má sorte, do injustiçado, da vítima da sociedade.

Luigi esboçava um arrependimento que ainda não poderia ser contado como real, porquanto ainda não reconhecia o quanto de mal ele tinha causado às pessoas através das perversidades do tráfico.

No grupo foi lembrada a comunicação do prisioneiro Latour, supliciado e evocado depois,[2] quando o guia espiritual do médium adverte:

“Não tomes os primeiros gritos do Espírito que se arrepende como sinal infalível de suas resoluções. Ele pode estar de boa-fé em suas promessas, porque a primeira impressão que ele sente ao se ver mergulhado no mundo dos Espíritos é de tal modo fulminante que, ao primeiro testemunho de caridade que recebe de um Espírito encarnado, entrega-se às efusões do reconhecimento e do arrependimento. Mas, por vezes, a reação é igual à ação, e muitas vezes esse Espírito culpado, que a um médium ditou tão boas palavras, pode voltar à sua natureza perversa, a seus pendores criminosos. Como uma criança que tenta caminhar, ele precisa ser ajudado para não cair.”[3]

Madre Teresa de Calcutá e seus abnegados seareiros do bem trabalhavam junto a um grupo de traficantes desencarnados, buscando resgatá-los para que influenciassem os que ainda estavam no corpo, buscando demover-lhes e muitas ações nefastas. Luigi era um homem de inteligência peculiar, embora votada ao mal, tinha uma capacidade de influência que se manejada para o bem produziria efeitos significativos.

A veneranda mentora, já de há muito, estabelecera uma ação espiritual para o resgate possível daqueles que apresentassem qualquer laivo de arrependimento e vontade de transformar suas vidas.

Assim Julius alternava momentos em que parecia profundamente arrependido e com desejo de se redimir, porém doutras voltava a clamar contra tudo e todos, e se rebelar contra a situação reeducativa que a vida criminosa lhe impusera.



Referências:

[1] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. FEB. Brasília DF. [2]: Revista Espírita - Jornal de estudos psicológicos – 1864. Novembro. Um criminoso arrependido (Continuação) [3] Ibidem.

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