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O Julius cap. 6



A casa ficava em meio a um pequeno bosque, cercada de muros altos, escondida dos olhares dos transeuntes. Tinha um aspecto agradável embora os canteiros de flores mal cuidados e a grama crescida, demonstrando que os seus moradores não davam atenção aos cuidados com a moradia. Ivone identificou-se ao homenzarrão que a atendeu no portão, entregando-lhe o bilhete que Luigi deixara com ela. Certamente, ele já havia informado ao cúmplice que ela iria, porquanto ao observá-la demonstrou já conhecê-la e a conduziu de pronto para o interior da vivenda, não sem antes certificar-se de que ela não estava sendo seguida.


Ivone olhava aquela moça alta, muito magra, com os olhos escuros, o cabelo avermelhado, que a olhava com um misto de desconfiança e ironia.


- Marcela, eu sou a Ivone, mãe do Italiano.


Ela apanhou o cigarro de cima da mesa, ao que Ivone fez um gesto para impedir.


- Não, não se meta comigo, “mamãezinha”! Eu já tenho um carcereiro, não preciso de mais uma.


- Não sou sua carcereira, minha filha, apenas quero ajudar.


- Ah! É mesmo? Então me ajude! Eu quero me ver livre deste filho, do seu filho! Eu não quero ter essa criança, não quero ser mãe, não quero ter qualquer ligação com o italiano, entendes?


- Entendo, perfeitamente! Mas o seu filho é um ser inocente. Não podes dispor da vida dele.


- É o meu corpo. Eu sou uma bailarina. A dança é minha vida! Vou engordar e ficar sem praticar a minha arte. Não, eu não quero!


- Marcela, eu vim aqui te fazer uma proposta: tenha a criança e depois a deixe a meus cuidados. Você não precisará mais ter qualquer compromisso com ela, com a sua educação, se você não quiser. Eu cuidarei, é meu neto ou minha neta.


Ivone apostava no instinto maternal. Sabia que aquela resistência não era perversidade, mas alguma dor profunda e que, o impulso de não conceber era um esforço enganoso de proteção.


A mulher estava fora de si, mas a voz suave e enérgica de Ivone fora lhe retirando as forças da rebeldia e as lágrimas começaram a jorrar como se estivessem lavando aquela alma batida pelo infortúnio das escolhas infelizes.


Ela também vinha da orfandade, de um lar desfeito quando ainda era pequena. O pai caíra de um andaime em uma obra irregular e a mãe ficara com ela e mais três irmãos pequenos para criar. Viu a genitora prostituir-se para trazer algum dinheiro para casa, depois o alcoolismo e a doença que a vitimou. Marcela foi recolhida com os irmãos para um abrigo, adotada por uma família que a submetia a maus tratos e a mantinha quase escravizada ao trabalho doméstico. Era muito bonita! Certo dia em uma festa na quadra da escola de samba que frequentava, chamou a atenção de um dos chefes do tráfico, que cuidou dela por algum tempo, cobriu-a de joias, deu-lhe até condições de estudar. Foi um período em que ela tivera um pouco de paz. Porém, a paz advinda do crime é tão ilusória e fugaz.


Quando ele foi morto, ela passou a ganhar a vida como dançarina nas boates mantidas pelo tráfico. Sua história com o italiano fora muito breve, poucas vezes ficaram juntos, não entendeu como engravidara, pois sempre tomara muito cuidado. Não queria uma filha ou filho para mergulhar no inferno em que vivia. Não, mil vezes não.


Ivone segurava as mãos daquela jovem desesperada e seu pensamento foi em busca do seu anjo amigo - Pai Vicente, acuda-me! Venha em nosso auxílio. Dá-me forças para defender essa vida inocente! A prece feita mentalmente teve o condão de ir acalmando Marcela que olhou para aquela senhora que lhe afagava os cabelos e teve ímpeto de se aninhar naquele colo como nunca o fizera com sua mãe. Precisava de mãe. Ivone percebeu e a fez deitar a cabeça no seu regaço.


- Ah! Dona Ivone, como eu estou cansada. Estou com medo. Sei que ele foi preso, podem vir atrás de mim. Não consigo dormir à noite.


Olhou para o “guarda” que a vigiava à meia distância e balbuciou. Esse aí deve estar apenas esperando a ordem do novo dono para acabar com qualquer rastro do italiano – e eu sou um deles.


Ivone percebeu que estava lidando com alguma coisa deveras perigosa e da qual não tinha a real dimensão. Olhou para Marcela e perguntou, ingenuamente:


- Ele não era da confiança do Julius?


- Confiança no mundo do tráfico? Isso não existe entre criminosos. As relações são apenas mantidas pelo medo que uns impõem e pelo medo que outros sentem. Lealdade, fidelidade, isto é sentimento de gente, Dona Ivone, e esses homens perderam a humanidade. Aqui fala o dinheiro, o poder, só isso. O italiano não tem mais condições de impor medo aos seus capangas, nem poder para manter-lhes a vida! Nem a dele. Na verdade, nem sei o porquê deste homem ainda me manter viva. Ele poderia ter queimado o arquivo e voltado para prestar “lealdade” ao novo Chefe.


Ivone estava pálida! Achou por muitos anos que a sua tinha sido uma vida dolorosa, sofrida, e foi. Mas agora percebia o quanto a dignidade, a honradez, a conduta reta são geradores de felicidade. Mesmo nas horas mais difíceis, quando o pão se tornou escasso na sua mesa, os filhos sofriam discriminação, a viuvez, a solidão, nada lhe infundiu a dor que as palavras de Marcela revelavam.


Precisava salvar o seu neto e a mãe dele. Eram as únicas gemas preciosas, em meio àquele lodo que se transformara a vida do seu filho Luigi. Ela vira nos seus olhos, naquela manhã em que, fugindo da polícia, foi encontrá-la, que aquela criança, fruto de uma aventura, se lhe constituía um afeto verdadeiro. Um afeto que abriria o coração perverso, rendido ao crime, a um possível retorno aos caminhos da lei divina.


E ela lutaria com todas as forças, que a vida lhe fizera desenvolver, para garantir que aquela criança nasceria. Ivone, em sua aparente fragilidade, escondia uma musculatura espiritual vigorosa, cultivada nos longos anos de enfrentamento à truculência do regime ditatorial que, sob o manto da defesa da democracia, acobertou crimes e arbitrariedades. Seu coração valoroso não desistiu de lutar pela sua família, pelos seus filhos, mesmo por Luigi, nestes anos todos o procurou, quando o encontrou, não silenciou, sempre que pode buscou despertá-lo da rota escabrosa do crime e agora estava ali, e a sua decisão estava tomada. Seu neto iria nascer e somente a vontade de Deus seria capaz de impedir que aquela vida prosperasse.


- Marcela, junte suas coisas! Você vai comigo! Você precisa de cuidados, de paz!


Disse isto em voz alta para verificar a reação do leão-de-chácara. Inacreditavelmente ele continuou impassível, fazendo um gesto discreto para Marcela atender o convite da veneranda mulher. A moça lançou-se, apressadamente, para o interior da casa, enquanto Ivone ficou ali, contemplando intrigada,


- Está olhando o quê, coroa?


- Você vai deixar a gente sair daqui, mesmo?


- Não sei nem por que, mas vou. Já devia ter dado um fim nisto, mas alguma coisa me deteve.


Ivone começou a sentir um calafrio, achou que ia passar mal. Nunca tinha ouvido uma sentença tão cruel, dita com tamanha naturalidade, mas buscou reforço na figura paternal de Vicente de Paulo e aproximou-se um pouco mais do facínora.


- Eu quero agradecer-lhe, por ter poupado a ida deles. Deus haverá de recompensar essa generosidade. Se houver algo que eu possa fazer por você, filho, diga que eu sou-lhe muito grata.


- Você nunca me viu. Nunca esteve nesse lugar e aconselhe essa maluca aí a sumir, porque se descobrirem que eu não fiz o serviço, eu vou me dar mal, mas vou encontrar vocês e todos os que são ligados a vocês, nem que seja no inferno.


Marcela voltou com uma pequena mala na mão, assustada, surpreendendo o fim da conversa entre os dois.


- Você não se preocupe! Eu não vou aparecer mais.


As duas mulheres saíram da casa e caminharam algumas quadras em silêncio, até a avenida onde puderam se instalar em um táxi.


A visão espiritual do momento era grandiosa. Uma alma de escol, devotada à recuperação dos Espíritos naufragados no crime do tráfico de drogas, assessorou Ivone desde que ela se deslocou ao encontro de Marcela, auxiliando-a na persuasão da futura mãe e contendo os impulsos criminosos do homem que a vigiava. Recostada no banco do automóvel a gestante sentia, pela primeira vez, na sua atribulada existência, a sensação de ser, verdadeiramente, cuidada e protegida.

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