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O Julius cap. 5



O Italiano contemplava as grades da solitária.[1] Eram minúsculas, ficavam bem no alto da parede e apenas deixavam passar pequeno fluxo de ar no calor escaldante do Rio de Janeiro.

Isabel, em desdobramento na reunião mediúnica, relatava aos demais participantes tanto a impressão daquele espaço asfixiante e mal cheiroso, quanto às emoções em desalinho do prisioneiro.


A operação policial fora um sucesso. Após quase um mês de cerco, que mesclava a técnica das forças policiais com a truculência de traficantes e homens da lei aterrorizando os morros, ele finalmente fora encurralado e preso. O chefe maior do tráfico estava ali, separado dos demais, pois a sua vida corria risco dado aos muitos inimigos que fizera ao longo da sua escalada criminosa. Havia também as autoridades envolvidas com o crime e sobre as quais ele sabia muito e que não tinham nenhum interesse de que ele continuasse vivo.


Mas a dor daquele homem, naquele momento, não era a perda do controle do morro, nem mesmo a condição subumana do cárcere, mas o seu coração sofria e muito, sinceramente, pelo seu filho. A fisionomia de Luigi era de tristeza profunda, de desespero e irresignação. Com os olhos fechados murmurava, conversando com o filho que iria nascer, como se ele estivesse ali:


- Por quê? Por quê? Eu nunca senti isso por alguém. Meu filho! Você pode mudar a minha vida. Desde que fiquei sabendo da sua existência senti que a minha foi sendo preenchida por um sentimento indescritível. Tudo o que eu fiz até então ficou sem importância. Eu te prometo filho, vou pagar pelos meus erros, custe o que custar. Eu ficarei aqui o tempo que for preciso para que um dia possa sair e te olhar nos olhos, te abraçar, pedir perdão pelos meus erros e ser para ti o pai que eu não tive.


- Luigi, ao lembrar-se do pai, deixou as lágrimas escorrerem pela face. Por muito tempo fantasiara sobre a figura paterna, dizendo que fora um herói, que lutara pela justiça e pela igualdade. Tinha na figura do genitor, um mártir. Até mesmo no morro, embora sem dizer o nome para não associar a sua família ao crime, revelava que era filho de um homem corajoso que fora assassinado injustamente, mas que um dia iria vingá-lo, por isso enveredara para o mundo do crime, para ganhar poder e dinheiro. Nem ele mesmo acreditava nisto, mas naquele momento a lembrança que lhe perpassava a mente, revestiu-se de um carinho ímpar, como se pudesse sentir o afago de um amor verdadeiro, colocando bálsamo nas feridas da alma, abertas pelas escolhas danosas que fizera.


A médium Isabel, orientada por Carlos, o benfeitor espiritual, juntamente com a equipe que atuava nesses misteres, somou-se para o auxílio, adormecendo o infeliz traficante que foi trazido à reunião mediúnica onde passou a falar:


- Senhores eu não os conheço e de antemão já aviso que não tenho mais poder. A boca mudou de “dono”. Então não posso livrar nenhum “loque”[2] para vocês.


- Acalme-se, amigo, nós não estamos aqui para reivindicar nada, apenas para te acolher, falou o dirigente da reunião.


- Ruim, hem? E porque fariam isto por mim?


- Porque tu és um filho de Deus, nosso irmão.


- Já vi que não sabem com quem estão falando. Estão enganados, senhores, não é comigo isto.


- Mas digam-me como conseguiram me tirar de lá. Eu estou guardado em segurança máxima.


- Ah! Meu irmão. Não há nenhum equívoco. Nós temos a segurança máxima do Universo, acalma-te e conta-nos o que podemos fazer para ajudar-te. Estamos percebendo que embora a tua desconfiança e essa estranheza e mesmo sem compreender o que se passa extravasas uma imensa aflição.


Os atendentes espirituais aplicavam energias no centro de força cardíaco do traficante em desdobramento pelo sono e ele foi se entregando às vibrações inoculadas.


- Tudo o que preciso senhores, é proteção para o meu filho e a mãe dele. Minha mãe está vendo isso, mas eu temo que ela não dê conta. Eu posso pagar.


O detento continuava muito desconfiado com aquele grupo de pessoas que se dispunham a ajudá-lo, pois os anos de vivência no crime ensinaram que sobreviver significava não confiar em ninguém, estar atento sempre e ter a todos como inimigos. No entanto o bem é soberano e a atmosfera do grupo era algo jamais vivido por aquele coração calcinado pela perversidade, mas que se rendera à proximidade de um afeto. A Providência Divina, solícita com as suas criaturas, vai estabelecendo, a cada instante, convites para o soerguimento e a renovação das almas em trânsito para o Pai. Luigi entregou-se, momentaneamente, ao amplexo vibracional daquela reunião. A mediunidade com Jesus é, verdadeiramente, um trabalho de resgate dos náufragos da existência em ambos os planos da vida. A comunicação de pessoas vivas nas reuniões mediúnicas é um fenômeno pouco estudado, mas trata-se de um recurso utilizado, frequentemente, pelos Espíritos benfeitores para o atendimento às dores humanas. Allan Kardec na questão 420 de O Livro dos Espíritos comenta: “O Espírito não está encerrado no corpo como numa caixa: ele irradia em todo o seu redor; porque pode comunicar-se com outros espíritos, mesmo no estado de vigília, embora o faça mais dificilmente.” O sábio e pesquisador Ernesto Bozzano, escreveu “Comunicações mediúnicas entre vivos”,[3] uma investigação científica composta de vários casos instrutivos sobre o tema.


Ali estávamos diante de Luigi, o italiano, adormecido fisicamente e trazido aquele grupo, acompanhando por Isabel em desdobramento mediúnico e depois assistido pela psicofonia,[4] relatando as nuances do caso.


A mãe do Julius era uma bailarina de uma das inúmeras casas noturnas mantidas pelo italiano para lavar o dinheiro do tráfico de drogas e repassar a pessoas “de bem” que se associavam e enriqueciam a custa dessa pandemia moral que destrói vidas. Luigi não cultivava relacionamento duradouros, envolvia-se com várias mulheres ao mesmo tempo, dando vazão à sensualidade desregrada, em busca de prazer sem qualquer freio moral. Porém, o Julius deveria retornar aos caminhos do mundo e refazer os vínculos interrompidos com a deserção da paternidade, ao abandonar os filhos para empreender uma guerrilha no distante Araguaia. Em uma noite de espetáculo, uma das bailarinas sentiu-se mal e desmaiou. Os seguranças da casa a levaram para uma emergência próxima. O médico atendeu-a e saindo para o corredor, deparou-se com o homem que a trouxera e deu a notícia: - O senhor vai ser pai, parabéns! O leão de chácara de Luigi ficou embasbacado, pois sabia que a mulher que estava lá dentro era o “caso” atual do patrão. A partir daquele momento uma revolução interior se faria na intimidade do temível italiano.

Marcela não queria o filho, sabia que um elo mais forte com um traficante seria a sua perdição. Era uma dançarina, queria a sua liberdade preservada. Daria um jeito naquele fruto não desejado. Mas Luigi não pensava assim. Ao saber, usou o seu poder para proteger a vida do filho. Isolou a moça em um lugar que somente a sua mãe, agora, sabia e colocou o seu homem de confiança, para que a gravidez chegasse a termo.


O comunicante narrou todos esses fatos, como se estivesse em contrição, e voltou a encarecer ao grupo.


- Por favor, ajudem meu filho, minha mãe, a mãe dele. Nada quero para mim, nem tenho moral para pedir qualquer coisa. Mas o meu filho não tem culpa dos meus erros.


Isabel silenciou e o dirigente, de forma amorosa, foi ponderando:


- Você veio ao lugar certo. Embora não veja, sente que almas amigas, que não perguntam quem és, nem o que fizeste, mas que identificam a sinceridade dos teus sentimentos para com as pessoas a quem amas estão a cuidar de ti e foram elas que te acompanharam até aqui. Precisamos que também faças a tua parte, auxiliando a fortalecer os teus afetos. Nesse momento eles não necessitam de bens materiais, isso será provido com recursos dignos, mas eles necessitam de bens espirituais. Ore conosco, irmão. Tua prece sincera levará forças a tua mãe que será o anjo bom do teu filho.


- Nem sei mais “rezar”, acho que isto não faz diferença. Minha mãe rezava tanto e só tínhamos sofrimentos na nossa vida.


- Nossa visão sobre a prece é muito materialista, meu amigo. Olhe para você e para sua mãe e veja quem está, neste momento, em condições de prestar auxílio, apesar de tudo o que você diz que ela sofreu.


Aquelas palavras enérgicas, mas repassadas de bondade, ditas pelo dirigente da reunião calaram fundo na alma do traficante. Luigi chorava, copiosamente, repetindo as palavras da oração que Jesus ensinou. O Pai Nosso ecoava na sala em penumbra; a voz era de Isabel, mas os sentimentos eram do comunicante que através dela rompia cadeias soezes construídas ao longo de uma vida marcada de atrocidades e crimes inenarráveis.


Antes de encerrar a reunião, na tela mental de Isabel, uma última imagem. Ivone, a mãe de Luigi, desceu do táxi e se dirigiu para o portão que escondia a residência. Conferiu o número no papel que o filho deixara com ela no último dia em que estiveram juntos. Olhou em torno para verificar que não fora seguida e tocou a campainha do portão.


Ivone não sabia, mas estava prestes a reunir sua vida novamente ao marido que a abandonara há tantos anos.




Referências:

[1] Cela solitária, ou simplesmente solitária, é uma forma especial de punição onde o detento é encarcerado numa cela individual e isolado de qualquer contacto humano, muitas vezes com exceção de membros do pessoal do presídio. É por vezes usada como um castigo para além da encarceração, e é referida como uma medida adicional de proteção contra os criminosos ou atribuída como castigo aos detentos que violem as regras da prisão em alguns países. https://pt.wikipedia.org/wiki/Cela_solit%C3%A1ria em 02/09/2020 [2] loque, na gíria do tráfico, é viciado [3] Obra publicada pela Edicel. [4] Medium falante conforme descreve Allan Kardec em O livro dos Médiuns

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