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O Julius cap. 4




Na manhã chuvosa a reunião mediúnica se iniciava e o desdobramento consciente se iniciou revelando cenas e histórias que os Espíritos vão contando. Na companhia amorosa de Jerônimo, o amigo espiritual, Isabel foi descrevendo para o grupo o que presenciava.


“O cheiro do café exalou pela casa. Ivone olhou pela janela e seus olhos divisaram o maciço da Tijuca. Era uma paisagem bela, como de resto todo o Rio de janeiro. Para todos os lados que o olhar se dirigisse, a majestosa criação se nos revelava os mais variados ângulos da cidade maravilhosa. No entanto, a visão do morro agora só lhe trazia inquietação e angústia.


Sorvendo a bebida reconfortante buscava forças para vencer mais um dia após a noite mal dormida, em que os estampidos dos tiros, pareciam transpassar a sua alma. Sabia que mais uma operação estava sendo deflagrada contra o tráfico. As notícias davam conta de uma investida das forças policiais para prender o “Italiano.”


Ergueu-se, foi até o quarto e olhou o quadro sobre a mesa de cabeceira. Nos últimos anos conhecera a Doutrina Espírita e sabia que as imagens não exerciam qualquer influência nas preces feitas do fundo do coração, mas Vicente de Paulo não era apenas uma imagem, era a presença de um amigo querido, um pai que velara por ela durante todo esse ano, desde que o marido a abandonara para ir lutar no Araguaia.


Conversava com aquela imagem como se o fizesse com o próprio pai, que conhecera somente pelas fotos, eis que a mãe ficara viúva antes dela nascer.


Com os olhos nublados pelas lágrimas e o peito opresso, deixou brotar do coração de mãe aflita um pedido incomum: que Deus permitisse que a polícia finalmente prendesse o italiano, mas que ele pudesse continuar vivo, e quiçá repensar a trajetória de crimes a que se devotara.


Ivone estava com quase 70 anos. A vida não fora fácil para ela. Cuidar sozinha dos filhos, sem emprego, discriminada e perseguida pelo regime, afinal era esposa de um guerrilheiro comunista, em um governo ditatorial. Professora universitária foi destituída da função pública de forma arbitrária, quando descobriram a ligação do marido com a guerrilha. Perdeu a conta das vezes que foi levada de casa e interrogada, exaustivamente, até que foi deixada em paz, mas continuava sempre vigiada, apontada pelos vizinhos, pelas pessoas maldosas. Mudou-se muitas vezes, seus filhos tinham que trocar de escola sempre que eram identificados como filhos de guerrilheiro. Algumas vezes passaram fome. O seu diplome universitário nada valia, nenhuma escola queria contratá-la. Lavou roupas para fora, trabalhou como doméstica, até que aprendeu a costurar e foi o que propiciou uma vida muito modesta, mas sem a fome rondando o lar e deu-lhe a condição de cuidar dos dois filhos.


Seus meninos cresceram. Donato, o mais novo, tornou-se médico. Todas as mazelas que suportou junto da mãe o tornaram um homem forte, decidido e bom. Iniciou a sua atividade nos hospitais públicos, nos postos da periferia, mas a dedicação e a inteligência privilegiada o levaram a construir uma carreira brilhante como um dos cirurgiões mais famosos do Brasil. Mesmo assim, mantinha a sua rotina de ofertar uma noite por semana para atender no hospital público e socorrer os necessitados que se apinhavam na emergência do grande nosocômio. Luigi, no entanto, recolheu todas as humilhações e dores que experimentara na infância e adolescência para justificar a escolha pelo crime.


Luigi era o italiano, que se tornara o poderoso traficante, senhor de vários morros cariocas. A sua rebeldia e o temperamento violento sempre foram motivo de desgosto e muitas preocupações para Ivone. Muitas das mudanças de endereço e até de algumas das escolas eram causadas pelas brigas e agressões que ele promovia, quando insultado. Não conseguia engolir os insultos que a família sofria e se indignava quando o irmão e a mãe abaixavam a cabeça diante das humilhações. Aos 14 anos, após esfaquear o filho de um militar que o afrontou na escola, foi recolhido para um instituto de correção de menores de onde fugiu alguns meses depois, em meio a uma rebelião.


Ivone somente voltou a vê-lo dez anos depois, quando a redemocratização do Brasil estava concluída e ela já havia inclusive reconquistado a sua função pública. Nunca deixou de buscar o filho amado, mas quando o reencontrou a decepção e a dor foram superlativas. Luigi estava diferente, extravagante, ostentando joias caríssimas. Foi deixado na frente da casa por um carro importado e estava rodeado de homens armados. Ela entendeu tudo. O “seu” Luigi era um criminoso. Ivone chorou muito abraçada ao filho, grata por ele estar vivo, mas o desespero de saber o custo de tudo isto sangrou a sua alma. Desde então pedia, nas muitas preces proferidas, uma intervenção divina. Luigi voltara algumas vezes para vê-la, depois se afastou para não ouvir as recriminações e os pedidos da mãe para que abandonasse o crime. Também não queria por em risco a segurança dos familiares. Nunca se avistou com o irmão que sequer desconfiava que o traficante que atemorizava os morros e de quem se comentava tantas atrocidades era o seu irmão. Ivone não tivera coragem de revelar a Donato mais essa tragédia das suas vidas.


Estava perdida em seus pensamentos, quando ouviu que batiam na janela.


- Mãe, abre a porta dos fundos!


Sem pensar, Ivone correu para a cozinha e abriu a porta.


- Luigi, meu filho!


- Não se preocupe, pois ninguém me viu entrar aqui.


Largou a pistola sobre a mesa e retirou da cinta mais outra arma. Ivone fechou os olhos.


- É rápido! Já vou embora só preciso dizer-te algo.


- Meu filho, entregue-se! Você pode cumprir a sua pena e recomeçar. Eu vou te ajudar.


- Mãe, mais do que nunca eu queria isto, agora. Mas é impossível. Deste mundo onde eu entrei só se sai morto.


Sentou-se e colocou a cabeça entre as mãos. Ivone acariciou os cabelos e lembrou-se do menino rebelde, das brigas, da indignação com as dificuldades da família. Será que ela tinha sido uma boa mãe? Não deveria ter sido mais forte, ter sido mais combativa? Ter defendido mais os seus filhos? Lembrou-se de Donato. Era um homem de bem e tivera as mesmas lutas e desafios.


Luigi sentindo o afago da mãe deixou que o pranto aflorasse, abraçando-se a ela permitiu-se, por alguns minutos, dar vazão a sua condição humana. Sim, porque todo aquele que infringe a lei de Deus é um fraco, que escolhe o caminho mais fácil e acaba forjando para si muitos grilhões que lhe impedem o vôo rumo aos patamares do bem estar à que todo o ser aspira.


O italiano limpou as lágrimas com o dorso da mão, empertigou-se e começou a falar.


- Tenho que ir embora. Creio que em breve vou ser preso. Estou cercado de muitos traidores rondando para assumir o meu posto. Se isso acontecer, se me matarem, quero que você saiba que vou ser pai. Você vai ter um neto, minha mãe.


Entregou a Ivone a foto de uma mulher e um endereço.


- Prometa para mim, mãe - ainda que eu não mereça nada de você - que vai cuidar deles.


Abriu o zíper da jaqueta e foi retirando de dentro o forro, muitos maços de notas, que colocou sobre a mesa.


- Guarde para o meu filho, por favor!


Ivone nunca tinha visto tanto dinheiro assim. Olhou fixamente para o filho e ripostou.


- Cuidarei do seu filho e da mãe dele, com uma única condição: - Que você leve, agora, esse dinheiro sujo de sangue daqui.


- Mas...


- Agora... Meu filho eu passei fome, humilhações, insegurança, dores as mais diversas, mas nunca fiz nada que afrontasse a minha consciência. Portanto, se queres a minha ajuda, terás, mas nos meus termos. Não quero seu dinheiro, nada do que é seu.


O temível fascínora, que apavorava os inimigos com a sua ferocidade e dominava comunidades inteiras com seu poderio, estava rendido diante da nobreza e da força daquela mulher. Foi recolhendo um a um os maços de dinheiro e com a voz entrecortada pediu perdão, depositou um beijo na face da sua genitora, quando se ouviu a sirene na rua. Luigi juntou as armas com rapidez e se foi.


Assim, Ivone que perdera o marido para a guerrilha no Araguaia estava prestes a recebê-lo na condição de seu neto amado.


O Julius estava voltando.


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