O Julius cap. 3 - Nos tempos da Inconfidência II
- Esta era a casa de meu pai, Isabel! Aqui nos reunimos várias noites, durante meses. Por aqui transitaram Tomaz Antonio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, Alvarenga, o Padre Carlos, o Toledo e tantos outros. Aqui, nesta sala, tivemos falas heroicas, fizemos planos audaciosos, sonhamos, construímos ideais e vivemos momentos dolorosos de despedidas, defecções, suspeitas de traições, instantes de fraquezas e covardias.
Isabel ouvia e sentia, buscando nas vibrações emitidas pelo ambiente, o desespero das mulheres, o ódio dos homens, o medo, as aflições de alguém que não sabe como será o dia seguinte. As vozes e soluços misturavam-se na sua acústica espiritual.
- Esta foi a minha experiência, minha amiga – Julius tinha o semblante tristonho - creio que posso chamá-la assim. Como vês o meu fracasso nesses empreendimentos não é de hoje. Eu já devia ter aprendido que a violência não favorece edificações duradouras.
- Mas Tiradentes é um herói, vocês são heróis, aventou Isabel mentalmente.
- Mas pelo testemunho das convicções, não pela força. Ele era um homem tão seguro de si, entusiasta, eu recordo de quando o vi e ouvi, na minha chegada ao Rio de Janeiro. Muitos tinham-no a conta de louco, tal a exaltação com que pregava suas ideias. Ele, na verdade, sempre quis que o caminho da mudança fosse realizado pelo diálogo com os representantes das cortes portuguesas. Joaquim era um homem de sentimentos nobres. Foi a sua verve generosa que me fez aderir ao Movimento e a sua crença nas boas intenções alheias, a sua perdição.
Julius foi mostrando cada cômodo da casa. Nos fundos da propriedade há um despenhadeiro íngreme e ele projetou na tela mental de Isabel uma cena de tirar o fôlego. A noite estava enluarada e viam-se homens subindo pelo meio do mato, com as mulheres em lombo de mulas, pois era o caminho menos óbvio e que não seria descoberto pelos soldados da coroa. Muitas mulheres foram, inclusive, mentoras intelectuais da inconfidência. A história apagou-lhes o nome em razão da sociedade patriarcal em que estavam inseridas.
O Julius foi a personalidade do inconfidente José Álvares Maciel, o engenheiro, mineralogista, formado em Coimbra, com estudos na Inglaterra.
A pena de degredo para Angola, onde desencarnou com 43 anos, foi um processo sofrido, embora tenha vivido em liberdade, que fora posto logo em seguida da sua chegada à África, as dificuldades de toda ordem marcaram-lhe o Espírito com as mágoas e frustrações provocadas pela “Devassa.”[1]
Recordar aqueles fastos era doloroso. Isabel percebia a dor daquele Espírito, quando, no museu dos inconfidentes, ela lia os autos da sentença proferida contra os presos da Inconfidência - e as acusações lançadas aos homens que sonharam com uma Pátria livre. O tempo abençoadamente sepulta os equívocos históricos. Os heróis da Inconfidência. como são chamados, ali eram tratados como criminosos comuns, indignos, traidores.
Julius/Maciel era um cientista que acreditava poder contribuir com o seu conhecimento para o benefício do povo e do país que nascia, mas não teve a paciência para uma construção pacífica. A depressão profunda que o abateu durante o degredo em Angola não o impediu de trabalhar e de sonhar, mas a dor do arrependimento marcou a ferro e fogo a sua alma, pelo dissabor de ver os planos tão arduamente concertados com o amigo e protetor Visconde de Barbacena serem fulminados pelo poder da Coroa Portuguesa.
Os homens necessitam entender o seu tempo e os caminhos pacíficos para a implantação de mudanças. Há nas civilizações e nas nações um elo de ligação que se traduz na necessidade de um caminhar contínuo, balizado pelas escolhas e pelo entendimento coletivo. Julius renasceu no Brasil, quase um século e meio depois da desencarnação em Angola e no Espírito inquieto trazia o desejo do desforço e o ímpeto de transformação das situações, pela força.
- Entendes agora o porquê do meu encantamento com essa doutrina tão bela a que fui apresentado e da qual recolho tantos aprendizados? Poderia ter utilizado a bênção do conhecimento e da ciência na qual sempre acreditei para contribuir em uma época de tantas oportunidades, mas abreviei a minha existência, mais uma vez.
Era profunda a tristeza do ex-guerrilheiro/inconfidente. Isabel, com o coração pulsando de gratidão, acomodada no veículo que retornava ao centro de Ouro Preto fez uma prece para consolar o amigo que se preparava, receoso, para retornar às estradas da Terra.
A estadia em Ouro Preto ficou gravada, indelevelmente, nas lembranças da mediunidade abençoada, porque foi a derradeira vez que Julius e a médium avistaram-se, com ele ainda na personalidade do guerrilheiro desencarnado nas lutas do Araguaia.
Naqueles dias ambos não sabiam, ainda, que seus caminhos se cruzariam muitas vezes.
Referência:
[1] Um Auto de Devassa é uma peça produzida no decorrer do processo judicial, como as petições, termos de audiências, certidões, entre outras[1].No Brasil, os autos de devassa da Inconfidência Mineira, ou seja, os autos do processo judicial movido pela coroa portuguesa contra Tiradentes e demais inconfidentes, para apuração de crime de traição, previsto nas Ordenações Filipinas[2] (legislação vigente na época).
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