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O Julius




O dia fora extenuante no trabalho, mas era muito bom encerrar o expediente com a sensação de que o esforço da equipe levara alento e auxílio a muitas pessoas. Um órgão do poder judiciário federal, especializado em Direito Previdenciário, é uma lição de vida, um aprendizado constante e uma oportunidade única de educação dos sentimentos Todas as lutas e dores que podemos imaginar desfilam por ali, diuturnamente.

Por esta razão ela sempre olhava os processos judiciais, não apenas como tomos de papel, ou arquivamento de petições e documentos, mas como vidas que dependiam muito dos que ali trabalhavam.

A secretaria já estava vazia àquela hora. Ela fechou os olhos e reclinou-se na cadeira para relaxar por breves minutos antes de enfrentar o trânsito. Foi quando percebeu a presença dele. Era um Espírito com quem há alguns meses vinha estreitando a sua sintonia. Não tinha aparência hostil, nem ameaçadora, apenas parecia cansado, como alguém que, em final de uma luta intensa, estivesse pronto a capitular.

Era uma terça-feira, véspera das reuniões mediúnicas onde ela, que era médium, frequentava. Mentalmente envolveu-o em uma prece e sinalizou-lhe o momento de intercâmbio próximo. Ao longo dos muitos anos de exercício da mediunidade aprendera a dialogar com os Espíritos, como o fazemos com os encarnados, ouvindo-lhes, acalmando as dores e sobretudo, prestando atenção às histórias que cada um trazia. E o Julius, assim se identificou, queria contar a sua.

Com os passar dos dias ele foi confidenciando que a acompanhava há muitos anos, há mais de vinte, o que a deixou surpresa e profundamente intrigada. Como nunca o percebera?

- Sim, a senhora tem muita proteção! Disse-lhe em resposta à indagação mental.

- Tenho não Julius. Eu só aprendi a lutar para sobreviver, isso desde que nasci.

Com naturalidade, ao longo dos dias de diálogo ele foi revelando que desencarnou na guerrilha do Araguaia.

Ele era um guerrilheiro, ainda sentia-se assim.

- Mas porque eu, porque você me acompanha há vinte anos?

- É uma história longa, mas preciso dividir com a senhora, se puder me ouvir. Tenho pouco tempo, mas gostaria de deixar registrado o que vivi neste período em que lhe segui.

Percebi que ali estava a chance de um grande aprendizado.

Julius começou a narrar a sua história

- Casei-me muito cedo, antes mesmo de concluir meu curso universitário. Aqueles anos foram difíceis, tínhamos muitos sonhos e pouco juízo. Abandonei minha esposa, com um filho pequeno, e grávida de outro, para internar-me na Floresta Amazônica e mudar o mundo. Éramos um punhado de rebeldes, querendo posar de heróis, pela força das armas que não tínhamos. Nem as lágrimas da minha mãe, nem as rogativas da esposa, nem o compromisso de pai me detiveram. Fui e fiquei lá, como muitos dos que hoje se contam dentre os guerrilheiros desaparecidos. O que, no entanto, mais me surpreendeu foi o fato de continuar vivo, mesmo depois de ter o corpo estraçalhado pelas balas disparadas pelos soldados, no meio da floresta. Vaguei muito, sem entender como eu estava vivo naquela situação, mutilado, sangrando, mas vivo.

- Recordo que, um dia, enlouquecido, uivando de dor, perseguido por seres tão medonhos quanto eu, lembrei de um quadro que minha mãe tinha sempre sobre a sua mesa de cabeceira. Era um padre chamado São Vicente de Paulo e desde criança ela me dizia: “Filho ele cuida da gente por ordem de Jesus, sempre pede a ele, que ele te ajuda.

- Nunca dei ouvidos a isso. Eu era ateu. Ateu e comunista. Mas o desespero foi tão grande que minha mente parou naquela imagem vinda do passado e pedi socorro a minha mãe e a São Vicente de Paulo. Implorei, pedi, clamei.

- Imediatamente, não sei como, eu lhe vi. A senhora estava em uma sala escura, como se estivesse fazendo uma oração. Eu senti como se um imã me retivesse ali e a senhora começou a falar tudo o que eu pensava. Eu chorava e a senhora também chorava, retorcia-se na cadeira, dizia sentir todas as dores que eu sentia. Nada mais vi depois disso.

- Quando despertei estava em uma enfermaria grande, com muitas bandagens, mas não sentia dor. Ela somente voltava, quando me lembrava do confronto na selva.

- Recuperei-me. O tempo foi passando e eu observava a sua rotina. Hoje eu sei que fui ligado ao seu dia a dia para aprender e que sempre fui tutelado, embora achasse que estava ali de moto-próprio.

Quando vi que a senhora trabalhava em uma unidade militar[1] e que os seus pensamentos eram de renovação e de justiça, de transformação daquela situação política, eu vi ali a chance de ter uma aliada para o desforço e enfim, poder vingar-me de tudo o que tinha sofrido e também desaguar a minha frustração. Percebi que podia transmitir-lhe meus pensamentos e minhas ideias.

Mas a senhora fazia tudo muito diferente. Tinha ímpeto, tinha ideias, lutava, mas não admitia prejudicar quem quer que fosse, nem aqueles que lhe causavam prejuízo.

- Você tem certeza, disso Julius? Eu não sou essa criatura tão correta assim. E pare de me chamar de senhora.

- Eu acompanhei-a na fundação dos sindicatos, das associações e sempre aguardando o dia da revolução que você faria, e ela veio.

- Revolução? Veio? Você está enganado. Eu nunca fiz revolução alguma.

- Sim, fez. Da forma mais pacífica que eu nunca imaginei que pudesse ser feita. Eu que sou um revolucionário, fui aprendendo nesses anos todos, que as mudanças verdadeiras somente se consolidam com o respeito ao próximo. Eu tenho-lhe muita gratidão, isso eu precisava dizer.

- Ah! E tem mais?

- Mais? Eu nem sei o que pensar. Afinal, Julius eu nem sabia que você existia.

- Sempre me intrigou saber de onde as pessoas como você tiravam todo esse sangue frio, essa “coragem”, para assim procederem e aí descobri. Passei a acompanhar os encontros no centro espírita e confesso que nunca tinha ouvido uma doutrina de tamanha racionalidade. Entendi que meu ateísmo era uma reação ao misticismo com que a religião sempre me houvera sido apresentada.

Sintetizando aqui as muitas conversas tidas com o Julius – esse é um pseudônimo - a médium Isabel percebeu que granjeara um amigo espiritual sem saber.

Quando o apóstolo Paulo diz que vivemos mergulhados em uma nuvem de testemunhas, não fazemos ideia do quanto. Nossos atos, palavras, pensamentos são utilizados pelos nossos benfeitores amigos como elementos educativos para nós e para os outros Espíritos.

Realmente, já em pleno trabalho de educação da mediunidade, muitas vezes ela sentia que as suas inconformidades com a situação política do Brasil e a situação dos servidores civis da União, à época, estavam a ponto de transbordar. A Doutrina Espírita funcionou, verdadeiramente, como “o freio e a espora” pelo que ficava sabendo agora, nem só para ela, mas também para o Julius.

Poucos dias depois, Isabel se preparava para a prece noturna e o recolhimento quando ele surgiu e disse-lhe:

Creio que está próxima a minha volta à Terra. Quero me despedir.

Isabel estranhou o que sentiu diante da informação. Ficou feliz por ele, mas ao mesmo tempo sentia como se um amigo de longa data lhe dissesse adeus. Ela acabara de saber dele, e ele já partia.

Mas a nossa vida com os Espíritos é assim, pensou, eles vão, mas suas lições ficam.

Naquela noite ela escreveu uma página que intitulou - Réquiem para Julius. Era um cântico de repouso para aquela alma.

Julius contou essa história e Isabel ficou curiosa para saber da sua família porque pelo tempo passado, os seus filhos, sua esposa, talvez sua mãe ainda estivessem vivos.

Mas você pensa que acabou aqui?

Pois ela também pensava.




Referência: [1] Refere-se ao trabalho profissional da médium que à época era servidora civil do Ministério do Exército.

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