top of page

Siá Tonha - cap. XII


372. Que objetivo visa a Providência criando seres desgraçados, como os cretinos e os idiotas? “Os que habitam corpos de idiotas são Espíritos sujeitos a uma punição. Sofrem por efeito do constrangimento que experimentam e da impossibilidade em que estão de se manifestarem mediante órgãos não desenvolvidos ou desmantelados.” a) — Não há, pois, fundamento para dizer-se que os órgãos nada influem sobre as faculdades? “Nunca dissemos que os órgãos não têm influência. Têm-na muito grande sobre a manifestação das faculdades, mas não são eles a origem destas. Aqui está a diferença. Um músico excelente, com um instrumento defeituoso, não dará a ouvir boa música, o que não fará que deixe de ser bom músico.” Kardec, 2015¹

A porta foi se abrindo devagar e Ierecê distendeu a corda do arco. Anauê continuava chorando.

- Baixe o arco mulher!

A voz máscula e a mão firme pousou na sua, fazendo a flecha disparar na direção do solo. O susto e a surpresa desorientaram Ierecê. Ela estava absorta na contemplação da porta do rancho não viu a aproximação do rapaz que a abordou pelas costas. Sentiu que os olhos turvavam e não viu mais nada.

Quando acordou estava deitada em uma rede e percebeu aquela fisionomia bondosa, uma basta cabeleira branca e olhos muito serenos que a contemplavam. Como um bichinho assustado, tentou pular da rede, mas não conseguiu, estava com os braços amarrados. Estava presa, pensou!

A anciã sorriu e começos a desatar os nós, pedindo paciência.

- Calma moça, foi para você não se ferir. Muitos dias e noites de febre intensa, você variou muito e tivemos que amarrá-la para protegê-la.

- Minha filha, Anauê, onde ela está?

- Ali, apontou a anfitriã.

Ierecê olhou e viu um pequeno berço improvisado com madeiras e a sua pequena dormia placidamente, agasalhada com roupas limpas. Ergueu-se e aproximou-se, segurando-a ao colo, afagando-a repetidas vezes.

Ainda estava confusa. Lembrava-se da porta da cabana, do arco em punho e da mão que lhe desviara o rumo da flecha, mais nada.

- Eu me chamo Joaquina, e você?

Ierecê não respondeu, encolhida a um canto, abraçada fortemente em Anauê, que começava a dar sinais de acordar.

- Você estava escondida no mato, e foi encontrada por Jandir, meu neto, que voltava da caça. Ele me disse que a seguiu, porque percebeu que você estava cansada e sozinha. Você me entende?

Sim, Ierecê compreendia o espanhol e o português. Seu pai havia lhe ensinado. Era filha do cacique da tribo e tinha conhecimentos privilegiados sobre vários aspectos.

- Vi que sua filhinha necessita de cuidados. Anauê começou a chorar. Instintivamente Ierecê colocou-a no seio, mas o leite havia secado. Joaquina, prontamente, ofertou a mamadeira que já estava preparada.

- Tome, dê a sua filha! É leite de cabra. Vai deixá-la forte. Há dias que nós a estamos alimentando assim. Estava muito mirrada. E você também. Precisa agora comer bastante.

Anauê sugava o leite com vontade, demonstrando a sua satisfação com o alimento ofertado.

Joaquina acolheu mãe e filha e junto com o neto, uma alma bondosa como a vó, tomaram conta delas.

Anauê nunca andou, não falou, mas Ierecê, a mãe de Vitorino, que reencarnara para receber Eugênia, foi o anjo bom daquela alma em rude expiação durante os 15 anos em que ela experienciou na terra. Joaquina desencarnou 05 anos após o reencontro com Eugênia. Pois ela era uma das moças que fora criada pela “patroa” e negociada com um comerciante de ouro, mas teve sorte, pois ele a desposou e mesmo quando o infortúnio os visitou, na roupagem da miséria, ela honrou o casamento. Tiveram uma filha que morreu no parto de Jandir. Com o pouco que lhe restou ela criou o neto e manteve-se digna, vivendo da criação de animais domésticos e da pequena lavoura cultivada. Também fazia benzeduras e receitava chás para aqueles viventes que moravam nos arredores ou que passavam por ali.

Após a desencarnação de Joaquina, Jandir seguiu seu destino e Ierecê permaneceu no rancho, cuidando de Eugênia.

O dia amanhecera cinzento, prenunciando temporal, os raios riscavam o céu ao longe e o ar abafado. O vento começou a uivar dobrando as árvores e fazendo redemoinhos de poeira no terreiro.

Ierecê percebeu que Anauê estava mais quieta naquele dia. Ela sempre agitava-se muito, soltava grunhidos tentado expressar alguma coisa incompreensível. Era uma alma encarcerada que absorvia os mananciais do amor materno como recurso terapêutico para as feridas abertas pelos inúmeros abusos pretéritos. Mas naquele dia ela estava com uma calma incomum. Os olhos pousados em Ierecê e o peito arfante como se quisesse expressar muitas coisas que o cérebro enfermo não permitia. Mas o olhar de Anauê para a sua mãe era cristalino. Ierecê sentiu que as lágrimas rolavam pelo seu rosto. Beijou as mãos retorcidas da filha, afagou-lhe o rosto, os cabelos, como se estivesse a se despedir daquele ser amado que era a razão única da sua vida.

O raio fendeu a árvore na frente do rancho, o trovão ribombou, Anauê sentiu um estremecimento que enrijeceu o seu corpo fazendo-a abrir desmesuradamente os olhos. Ierecê abraçou-se ao corpo de Anauê e percebeu que a respiração ofegante havia cessado.

Referência:

1 Kardec, Allan – O Livro dos Espíritos. Questão 372 – FEB Editora.

Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page