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Siá Tonha - cap. XI


Ierecê começou a sentir as dores que anunciavam ter chegado a sua hora. Como era de costume entre as índias juntou a pequena trouxa com os pertences que já estavam preparados desde a troca de lua, quando sentiu que a barriga começava ficar mais pesada e difícil de carregar.

A noite estava abafada prenunciando o temporal que se aproximava, sinalizado pelos relâmpagos que riscavam o céu no horizonte. A parturiente ganhava o mato com rapidez, dirigindo-se para a Caverna dos Corvos, como era chamada a grande pedra côncava que se erguia em meio à floresta, rodeada de árvores muito antigas, cujos troncos enroscavam-se como se estivessem abraçados, medindo forças.

As dores faziam-na dobrar-se sobre si e deter o passo, respirando apressadamente, até que a contração cedia e ela se punha a caminhar, serpenteando por entre a vegetação. Em pouco tempo alcançou o abrigo a tempo de proteger-se das primeiras gotas de chuva que já começavam a cair.

Agachou-se no canto mais profundo da gruta, iluminado pelos raios ameaçadores que culminavam com o ribombar dos trovões.

Desamarrou a pequena trouxa e dispôs os panos e demais apetrechos para o parto, colocando-os ao alcance das suas mãos. Mesmo em meio à escuridão encontraria o necessário, quando a hora chegasse.

As dores foram amiudando e tornando-se mais fortes até que Ierecê sentiu que a criança estava nascendo. Um último esforço e um chorinho débil foi abafado pelo estrondo da tempestade.

Um raio fendeu o tronco de uma das árvores em frente a caverna e o fogaréu iluminou a noite.

A indiazinha olhou para aquele pequenino ser e viu que era uma menina. Tinha os bracinhos retorcidos, as mãozinhas atrofiadas e chorava com dificuldade, como se não possuísse o movimento do pescoço, pois a cabecinha era voltada para um lado.

Como aprendera com as outras índias de quem acompanhava os partos ela seccionou o cordão umbilical, e fez o pinçamento com a tira de pano embebida nas ervas que auxiliam na cicatrização. Enxugou o bebezinho, enrolou-o, aconchegando-o ao seio.

Espalhou as esteiras que eram deixadas na caverna para os que ali fossem se abrigar e concluiu o parto.

Assim, Eugênia renasceu para novas lutas nas terras de São Miguel.

Ierecê sabia do destino que aguardava as crianças que nasciam aleijadas, na tribo. Eram tempos difíceis. Haviam voltado para a terra dos seus ancestrais, mas só encontraram a destruição, fome e privações.

Naqueles dias apenas os fortes sobreviveriam. As crianças, e principalmente as meninas, com qualquer deficiência eram consideradas um estorvo e eram abandonadas a própria sorte para morrer.

Olhando aquele serzinho indefeso, tão pequena, que sugava o seu seio com tamanha dificuldade, ela decidiu: Não voltaria para a tribo. Sabia o que o pai faria. Não a deixaria amamentar e nem cuidar da menina. Era o primeiro filho e ele esperava um varão, um guerreiro e ali estava uma menina com aleijões.

Há algumas noites ela vinha sonhando com uma menina e acordava muito aflita, porque não conseguia ver o rosto da criança, apenas ouvia o choro. Ao sentir as primeiras contrações, ao invés de chamar as parteiras da tribo decidiu ter sua filha sozinha, como se quisesse protegê-la.

Enquanto pensava, sentiu que as forças se ampliavam, e era como se estivesse amparada por mãos invisíveis enquanto juntava as poucas coisas que trouxera para a caverna. Improvisou um cesto para carregar o bebê e partiu.

Andava com cuidado, pelas trilhas mais desertas, alimentando-se de frutos, raízes e água. Escondia-se a cada movimento que identificava na mata para não ser surpreendida por alguém que pudesse andar no seu encalço.

Andou muitos dias. Descansava pouco para afastar-se o mais que pudesse dos domínios da tribo. Estava a beira da exaustão quando viu em uma pequena clareira um rancho cuja chaminé fumegava e ficou a espreita.

Foi quando a pequena Anauê, esse foi o nome que dera a sua filha, começou a chorar. Ierecê deu-lhe o peito, mas o cansaço da caminhada, da alimentação escassa dos últimos dias havia lhe consumido o leite.

Desesperou-se, pois o choro seria ouvido, chamaria a atenção de quem estava dentro da casa e ela não sabia quem poderia ser, e também não podia correr o risco de ser descoberta por alguém que fizesse mal a sua filha.

Ela era hábil no manejo do arco e encontrara um no mato, junto com a bolsa das flechas. Talvez algum guerreiro o tivesse perdido, ou alguém ferido o tivesse deixado para trás.

A índia escondeu-se mais e apontou a flecha para a porta do casebre e esperou.

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