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Siá Tonha - cap. III


OS TEXTOS AQUI PUBLICADOS TEM SEUS DIREITOS AUTORAIS

INTEGRALMENTE CEDIDOS À FEDERAÇÃO ESPÍRITA DO RIO GRANDE DO SUL.

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Começou pela parte III? Leia os capítulos em sequencia:

A charrete corria por entre as aléias floridas na direção da fazenda.

Mariana protegia-se do sol sob a grande sombrinha, rematada de rendas, que encobria o seu rosto e as lágrimas que rolavam abundantes.

Ela percebia, agora, o quanto aquela criaturinha frágil, simples e anônima, que morava nos fundos do campo de sua propriedade, era importante para ela.

Na verdade era a única amiga que tinha. Casara-se com o Coronel Hilário, quase menina ainda, órfã de pai e com a mãe apressada para casá-la e assim proteger a ambas que ficaram sozinhas após a morte do pai. Herdeira de grande fortuna teve o seu consórcio ajustado pelo seu tutor, nem ela mesma sabia como e o porquê. Afinal Hilário era um rapaz sem tradição, não era de nenhuma das famílias conhecidas da sua, também não possuía haveres significativos, apenas as terras adquiridas pelo pai e depois as que ganhara do Império, quando retornou da guerra.

Recordava, também, que quando chegara à estância após a lua de mel, iniciou uma vida solitária. Embora o marido satisfizesse todas as suas vontades e a tratasse muito bem, a relação deles era distante, não nutriam um afeto conjugal verdadeiro, senão um contrato de convivência pacífica que ambos estabeleceram e a ele se adequaram. Esse isolamento afetivo fez com que ela se afeiçoasse às crianças dos agregados e peões, instituindo uma pequena escola onde alfabetizava os pequenos, os jovens e até alguns adultos que despertavam para esse mister, além de auxiliar muito no provimento das necessidades básicas das famílias.

Foi em um dos longos passeios pela propriedade que avistou o racho de Siá Tonha no meio do arvoredo. Na época a mãe de Antonia, Dona Conceição ainda vivia e Mariana logo se encantou com elas e passou a visitar aquelas duas almas tão especiais, que, percebeu, eram benfeitoras anônimas dos moradores daquelas redondezas.

Suas idas ao rancho se tornaram frequentes, pois sempre ficava mais calma e alegre cada vez que”Ceição” ou Tonha lhe aplicavam alguma benzedura e faziam suas rezas para ela.

Vieram os filhos - os meninos cresceram- recebendo muitas vezes o atendimento de Siá Tonha, depois que Ceição morreu. Agora ela fora embora e Mariana sentia um grande vazio no coração. Lembrava que somente quando a mãe morreu vitimada pela febre tifóide, ela sentiu tamanha dor.

Siá Tonha era para ela o ouvido atento e a voz consoladora que lhe chegara sempre nas horas difíceis. O casamento, com o passar dos anos, foi se tornando cada vez mais difícil de suportar. Embora fosse uma união arranjada por interesse, Mariana tinha esperanças de aprender a amar o marido com o passar do tempo. Mas Hilário logo passou a se envolver, amiúde, em casos extraconjugais, com algumas pessoas do círculo social que frequentavam vez ou outra.

Mariana confiava ao coração bondoso de Siá Tonha a sua humilhação e a revolta pelas deslealdades do marido. A benzedeira que conhecia o caráter do coronel, de longa data, e tinha dele recordações bem dolorosas, conquanto superadas para ela, compreendia o sofrimento de Mariana e a consolava sempre, jamais deixando transparecer o que sabia sobre Hilário.

Era quase meio-dia quando a charrete adentrou o grande parque que circundava a propriedade. Mariana desceu e ordenou a Nonato que providenciasse a remoção do corpo de Antonia e arrumasse o velório na capela da fazenda.

Quando a notícia foi comunicada na estância causou um alvoroço entre os peões, criadas e crianças que prorromperam em sentido pranto, pois todos ali deviam muito àquela alma que cuidava de tantos, há muito tempo. Diante da comoção que se formara, o coronel Hilário veio do escritório para inteirar-se do ocorrido.

Recebeu de Dona Mariana a informação do ocorrido e também das providências por ela tomadas para as exéquias fúnebres de Siá Tonha. Ele não se opunha às decisões da esposa e, em especial, naquele caso ele tinha sérias razões para não fazê-lo.

Afastou-se lentamente em direção ao interior da casa e ia pensando, murmurando em voz alta:

- Como será de agora em diante?

Mariana que vinha a poucos passos do marido apressou-se e indagou:

- O que você falou Hilário?

Ele não respondeu. Tinha o olhar distante.

Mariana não insistiu, rumou na direção da cozinha da fazenda para dar as ordens necessárias à tarde e noite que seria longa e de certo com muitas pessoas chegando para a despedida de Siá Tonha.

Hilário dizia sempre que nas suas crises não sabia por onde andara, nem o que lhe sucedia, nem porque se feria nos acessos de demência, mas não era verdade! Sabia, e muito bem, que era atendido por Antonia. Lembrou-se da primeira vez em que os seus homens o manietaram e o levaram até ela. Ele a reconhecera. Era a mulher que anos antes ele violentara e deixara no mato, desacordada e ferida, para morrer. O choque fora tão grande para ele ante o atendimento recebido dela, o sentimento que ela lhe passara de total esquecimento da grave ofensa que lhe fizera, provocou no seu caráter tíbio um processo de negação.

Quantas vezes, naqueles anos todos, ele encilhou o cavalo e pensou em ir até o rancho e pedir perdão a ela. Não era um homem dado a essas coisas, mas sentia um grande alívio quando recebia o atendimento de Antonia. Assim, no seu coração enrijecido, um pálido reflexo de gratidão se desenhava. Mas a vontade nunca se transformou em ação, Hilário por vezes rondava o rancho, mas não tinha a coragem de desmontar do cavalo e praticar a ação que seria, para o Espírito réprobo que era, um início de libertação das cadeias do remorso.

– Serão um castigo para o culpado essa divulgação de todos os nossos atos reprováveis e a presença constante dos que deles foram vítimas? “Maior do que se pensa, mas tão-somente até que o culpado tenha expiado suas faltas, quer como Espírito, quer como homem, em novas existências corpóreas.”

Quando nos achamos no mundo dos Espíritos, estando patente todo o nosso passado, o bem e o mal que houvermos feito serão igualmente conhecidos. Em vão aquele que haja praticado o mal tentará escapar ao olhar de suas vítimas: a presença inevitável destas lhe será um castigo e um remorso incessante, até que haja expiado seus erros, ao passo que o homem de bem por toda parte só encontrará olhares amigos e benevolentes. “

Para o mau, não há maior tormento, na Terra, do que a presença de suas vítimas, razão pela qual as evita continuamente. Que será quando, dissipada a ilusão das paixões, compreender o mal que fez, vir patenteados os seus atos mais secretos, desmascarada a sua hipocrisia e não puder subtrair-se à visão delas? Enquanto a alma do homem perverso é presa da vergonha, do pesar e do remorso, a do justo goza perfeita serenidade. ”¹

Hilário não entendia que era portador de sensibilidade mediúnica e que os “acessos de loucura” como às vezes escutava os peões e os criados falarem era um ataque dos seus adversários espirituais, e eram muitos, que o manipulavam até deixá-lo inconsciente.

Agora Siá Tonha estava morta e seria velada na capela da sua fazenda. Imerso nesses pensamentos, Hilário começou a ouvir muitas vozes que o acusavam e sentiu que iria novamente entrar naquele estado de descontrole e inconsciência. Ainda foi possível ouvir o seu grito desesperado: -“Não! Por favor, não! Ela não está mais aqui! O que será de mim?

¹Questão 977-a – O Livro do Espíritos – Allan Kardec

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