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Sob as bênçãos de Deus! – Capítulo 2




Unicamente no mundo das causas, após a desencarnação, ser-lhes-á possível o entendimento claro, acerca dos vínculos em que se imanizam.[1]


Tão logo Emília despertou na espiritualidade o seu pensamento buscou os dois afetos da sua existência: sua mãe e Leontina.

Viu-se percorrendo os grandes cômodos da casa à beira do mar. Conhecia cada espaço, cada detalhe, e viu que quase nada tinha mudado. Um reparo aqui, um ajuste ali, mas parecia-lhe que tinha fechado a casa um dia antes, naquele final de temporada de 2019-2020, quando já se anunciava a doença que se espalharia pelo mundo.

Emília compreendia o seu estado atual, sabia que tinha desencarnado, mas que a vida continuava. Sempre lera as obras espíritas, o Evangelho segundo o Espiritismo, o Livro dos Espíritos e quando lhe sobrava tempo, ia uma vez por semana receber passe e assistir palestra no centro que ficava no mesmo bairro da mansão. Durante a pandemia foram os livros, que adquirira ao longo do tempo, os seus companheiros diletos, os quais lia para a sua mãe, comentando como entendia as lições ali contidas, e assim ambas se prepararam para a viagem de retorno.

- Como estará Dona Leontina? O pensamento a levou de imediato à presença do móvel das suas preocupações. Leontina espreguiçava-se ao sol, na piscina da qual se via o mar, também. Uma onda de carinho, quase piedade invadiu o coração de Emília. Pensou na solidão daquela alma, no quanto as relações que ela estabelecia eram superficiais, nem ela estava mais ali para fazer-lhe as vontades e ouvir suas reclamações. Não entendia de onde vinha esse sentimento pela patroa, que afinal a abandonara nos momentos mais difíceis da sua vida. Ela e a mãe somente não passaram fome, porque a caridade alheia e a solidariedade dos seus iguais assim não o permitiram.

Pensou no Senhor Monteiro. Teria sobrevivido, com todas as doenças que já tinha?

Ali estava ele. Na cadeira onde costumava ficar. Cabeça pendida sobre o peito, olhar vazio, boca entreaberta da qual a saliva escorria, constantemente. Monteiro há vários anos enfrentava o Mal de Parkinson. Sempre merecera de Emília muito cuidado e carinho, pois era um homem gentil, amável, quando estava saudável sempre a tratara com muita deferência. Diferente de Leontina, ele sabia expressar os sentimentos, os quais muitas vezes ela ironizava, dizendo que ele tinha uma alma de pobre. A diferença de idade entre ambos era de quase 20 anos. Ela fora agente de turismo e se conheceram em uma viagem, em que conduzira o grupo. A relação entre ambos teve sua origem em um adultério. Monteiro apaixonou-se pela jovem bela e sem escrúpulos, embora estivesse com a esposa na viagem, relacionava-se com a agente às escondidas. Tal relação provocou o divórcio do casal e o casamento por interesse que perdurava até então. A grande fortuna do empresário fora e continuava sendo o único elo daquele casamento infeliz.

Monteiro, com a debilidade dos laços físicos e o Espírito, provocada pela enfermidade, percebeu a presença de Emília. Os seus olhos sinalizaram um brilho tênue e os tremores “involuntários” atestaram a emoção do enfermo. Emília - Espírito aproximou-se e segurou as mãos do seu antigo patrão.

- Que bom vê-lo Senhor Monteiro. Quero lhe dizer que “aquelas conversas que tínhamos” – conversavam sobre Espiritismo, – é verdade! Aguente firme, meu amigo! Isso tudo vai passar.

Monteiro desatou a chorar, convulsivamente, e com dificuldade pronunciava:

- Emilia, Emília.

- Os cuidadores acorreram para acalmar o doente. Eles estavam há bastante tempo tomando conta dele e conheciam Emília, por isso interpretaram o fato como se ele estivesse perguntando por ela. Um deles comentou, sem cerimônia, como se o enfermo não estivesse presente, ou se estando ali estivesse desprovido de lucidez para entender.

- Ele não sabe que ela morreu? Será que a “Leoa” não contou? – Chamavam, jocosamente, Leontina de leoa.

- Ela nem chega perto dele, referiu a outra cuidadora.

Emília continuava afagando a mão de Monteiro e transmitindo o seu carinho para ele, que era outra alma em profunda solidão. O segundo casamento o afastara dos dois filhos que tivera no primeiro, pois a esposa, ressentida do abandono, tratou de criar a animosidade dos filhos em relação ao pai. A segunda esposa era manipuladora, e enquanto pode exibir-se na companhia do milionário, que apaixonado lhe satisfazia todas as vontades, deu a ele a falsa ideia de que o amava. Quando a doença surgiu e ele ficou dependendo de cuidados especiais ela cercou-o de estranhos que tomavam conta dele e, muitas vezes, passava semanas sem sequer entrar no quarto onde ele estava.

Para a sociedade, no entanto, pousava de esposa extremada, protetora, que se sacrificava para que o marido não fosse exposto à curiosidade e à piedade alheia, que na sua visão eram incompatíveis e inapropriadas a alguém na posição dele.

O filho que ambos tiveram, morava no exterior, há mais de dez anos e tal como a mãe não era pessoa de cultivar laços afetivos ou amorosos. Vinha poucas vezes ao Brasil, e se demorava escasso tempo com os pais.

Monteiro ficou o resto do dia com a sensação da presença amiga de Emília que, nos últimos anos, antes da pandemia, fora a única pessoa que demonstrava algum afeto fraternal por ele e o olhava como um ser humano frágil, necessitado de calor humano. Diante do comentário do atendente, Emília esclareceu, mentalmente, a Monteiro que sim, ela havia se transferido para a espiritualidade, mas que estava bem e que a vida não se encerrava com a morte do corpo físico.

Voltando à presença de Leontina, Emília percebeu a inquietação e o estado de alma entristecido da sua antiga empregadora. Conhecia o trejeito que denunciava quando algo a estava incomodando. A mão coçava, insistentemente, o lóbulo da orelha direita, dobrando-o ora para dentro, ora para fora. Aproximou-se mais e identificou que a mulher pensava nela, imagens das atividades de preparação das festas na casa da praia desfilavam pela mente da dona da casa e isto acordou em Emília sentimentos que ela pensava ter superado, dentre eles, a mágoa.

A alegria que experimentara na conversa com Monteiro, as lembranças daquele lugar onde vivera tantos momentos da sua existência foram sombreando ante a absorção dos pensamentos de Leontina, que sem perceber, colhia os frutos da culpa pela atitude egoísta que nutrira. A lembrança do abandono a que relegara a colaboradora de tantos anos abriria, para Leontina, uma senda educativa para o resgate de tantos equívocos cometidos na existência e para Emília a oportunidade de perdoar e redimir-se diante de um amor infeliz do passado.


Referência Bibliográfica: [1] Xavier, Francisco Cândido; Emmanuel (Espírito). Vida e sexo. FEB - Federação Espírita Brasileira. Edição do Kindle.

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