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O adeus do tropeiro




Para quem se coloca, pelo pensamento, na vida espiritual, que é indefinida, a vida corpórea se torna simples passagem, breve estada num país ingrato. As vicissitudes e tribulações dessa vida não passam de incidentes que ele suporta com paciência, por sabê-las de curta duração, devendo seguir-se-lhes um estado mais ditoso.[1]


Turíbio sentiu-se diferente naquela manhã. Quando sentou na cama tosca feita com pelegos teve dificuldade para erguer-se. Era como se estivesse chumbado, pois parecia que as pernas não lhe obedeciam ao comando.

Lembrou-se do seu pai que já se fora para o outro lado da vida há tanto tempo, quando ele ainda era moço e viu o velho debruçado na porteira da invernada como se não conseguisse dali se afastar.

Chamou: pai!

O velho peão olhou para ele como se não o visse, mas era um olhar que lhe transpassava a alma. Ele foi se achegando e seu pai num esforço intenso colocou o braço sobre o seu ombro e disse, apenas: - cuida da tua mãe, Turíbio.

Não falou mais nada e foi deslizando para o chão, como um tronco abatido pela ventania, com os olhos extasiados, fixos no céu, como se estivesse a contemplar uma bela visão.

Agora, sabe-se lá por que, ele também tinha vontade de se escorar numa porteira. Já havia combinado com a sua comitiva de tropeiros que depois dessa, ele desmontaria. Vinha percebendo que as longas cavalgadas judiavam por demais do corpo alquebrado pelos muitos anos daquela lida.

Amava muito o quê fazia. As noites nos pousos onde as histórias criavam cenas imaginárias ao redor do fogo, as modas cantadas pelos violeiros, as escutas das dores dos companheiros eram momentos que faziam valer a pena o cansaço das campereadas. Mas ele estava muito cansado e as forças diminuíam, dia após dia. Também as tropas estavam escasseando, pois o transporte em caminhões e trens se intensificava. Sabia que o progresso se fazia, mas ele era um homem d'outro tempo.

Tentou colocar os arreios no gateado e... estranho, ao fazer o movimento de encilha, a sela não se moveu e ele se via duplicado. Um, encolhido no chão, imóvel e outro, tentando selar o cavalo.

Antes de compreender o que se passava ele viu a figura de um homem que se aproximava. Aquele jeito de caminhar, manquejando levemente a perna direita, ligeiro, batendo com o relho no cano da bota era inconfundível – era o seu pai. Seria um sonho? Devia ser, pois o pai estava morto, há tempos.

- Turíbio, meu filho!

- Pai? Como pode isso?

- Estou vivo, pois ninguém morre e tu também estás, mas é hora de desmontar. Todo mundo tem que apear um dia, e o teu, é hoje.

- Tu te lembras como foi comigo? E te abracei e foi rápido. Descobri que quem não precisa de cerimônia para morrer é assim, e pelo jeito tu também não precisou.

- Tu queres dizer que eu morri? É isto? Pois eu queria descansar um pouco desta vida, aproveitar, porém ainda não queria morrer, meu velho.

- Bem... bem, tu não ias te acostumar a ficar parado na volta de casa. A gente nasceu pra recorrer os campos de Deus e assim vamos continuar.

- Levanta daí e vem comigo! Terás um breve tempo para te refazeres e depois continuamos o trabalho. Nós que somos campeiros, homens simples da lida dura, temos sempre muito a fazer nos domínios do nosso Pai, porque essa arte de reunir, apascentar e conduzir os rebanhos nos faz desenvolver algumas virtudes como a paciência, a obediência, a energia, a vigilância e sempre, a perseverança.

Turíbio ouvia e concordava com um leve balançar da cabeça e foi dizendo: - É mesmo! Ainda nessa tropa passei dois dias, embrenhado em um grotão para trazer uma rês de volta e não me dei por vencido.

- Ainda bem, filho, porque os grotões da violência, do ódio, da corrupção têm cooptado muitas almas incautas e nós, os servidores leais do Cristo, temos que nos internar neles para resgatá-las, como irmãos que somos.

Os dois foram se afastando do pouso, enquanto se ouvia o alvoroço da peonada, ao encontrarem Turíbio morto, abraçado aos arreios do seu amigo de estrada – o gateado - que, tristemente, permanecia deitado ao lado do dono.


Carlos

Referência: [1] Allan Kardec. O evangelho segundo o espiritismo (p. 54). FEB Publisher. Edição do Kindle.

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