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Sob as bênçãos de Deus! - Capitulo 10




Sei bem haver casos que se podem, com razão, considerar desesperadores; mas, se não há nenhuma esperança fundada de um regresso definitivo à vida e à saúde, existe a possibilidade, atestada por inúmeros exemplos, de o doente, no momento mesmo de exalar o último suspiro, reanimar-se e recobrar por alguns instantes as faculdades! Pois bem: essa hora de graça, que lhe é concedida, pode ser-lhe de grande importância. Desconheceis as reflexões que seu Espírito poderá fazer nas convulsões da agonia e quantos tormentos lhe pode poupar um relâmpago de arrependimento.[1]


Foi um longo e educativo período para todos.

Leontina, mergulhada na revolta pela situação vivida, não opôs qualquer obstáculo ao avanço da doença que se espalhou rápido em metástases que a consumiam.

Suas dores excruciantes foram, no entanto, um recurso para o abrandamento dos sentimentos do filho Jean, que se comovia com o sofrimento daquela criatura que vira tantas vezes dominando os lugares por onde passava com a sua presença e a sua beleza, e agora estava ali, presa a um leito, com o corpo físico diminuto, onde os próprios gritos de dor foram se resumindo a gemidos débeis que inspiravam compaixão.

Emília, sob a tutela caridosa do Irmão Deboni, associou-se aos cuidados com a enferma, e acessou os sentimentos do moço que ela ajudara a educar, cuidar, vira crescer e para quem muitas vezes assumira a condição de mãe, nas noites onde as crises de pânico e a solidão faziam-no se refugiar nos seus braços.

O filho de Leontina passou a acordar, não raro, com a lembrança dos sonhos que tinha com os dias da infância em que a atenção do pai ainda era constante para com ele e, também, a lembrança vívida de Emília e as mais diversas providências em que ela se envolvia com ele.

Pela primeira vez sentia saudade, uma dor que o fazia querer de volta aqueles tempos e perceber o quanto havia sufocado dentro de si essas emoções, porque se julgava esquecido, descartado da vida dos pais e lhes retribuíra da mesma forma. Mas Emília, ela não merecera o seu descaso, a sua indiferença, embora fosse tão somente uma serviçal assalariada, entendia que ela lhe dera muito mais do que um simples atendimento que a sua função previa, Emília amara-o. Conhecera tantos amigos que tinham pelas suas babás um sentimento profundo de respeito, amor e dedicação, mas ele nem isso aprendera a cultivar. Ela estava morta agora e ele não tinha mais como lhe falar dessas coisas. Quando esses pensamentos acudiam a sua mente sentia vontade de chorar, emoção que há muito banira do seu cotidiano. Era tido como um homem fútil, frio e insensível pelos que com ele conviviam. Naqueles últimos tempos, há contragosto, vinha às escondidas dando vazão a esses instantes que considerava uma fragilidade inoportuna.

- Dr. Jean, o senhor pode entrar.

A voz da enfermeira veio retirar-lhe das reflexões, enquanto aguardava o momento da visita diária que agora fazia à Leontina, pois ela estava sendo examinada pela equipe que buscava um tratamento paliativo para diminuir as dores e conceder-lhe o possível alívio nos derradeiros momentos.

Deboni e mais alguns atendentes espirituais sempre acompanhavam as visitas que eram pedagógicas para Emília e Jean. Aquela continuava o exercício do perdão às ofensas de que se sentia destinatária, quando a patroa a abandonou nos dias tormentosos da pandemia e este, buscava tratar as feridas que as asperezas de um relacionamento materno-filial abriram em sua sensibilidade.

- Como ela está? Jean percebeu a presença do médico de Leontina aguardando-o.

- Assim, Jean. Não esboça mais qualquer reação. Penso que ela tem poucas horas de vida. Os sinais vitais estão fraquíssimos e se você quiser, podemos levá-la para uma Unidade de Tratamento Intensivo, colocarmos os aparelhos que darão mais algum tempo de vida, mas se me permite a orientação, não o faça. Será um prolongamento doloroso do sofrimento, sem resultados.

A fala do médico teve em Jean um efeito inesperado. Ele sentiu como se tivesse recebido um golpe violento no estômago, cambaleou e teve que ser socorrido pela equipe de enfermeiros que ainda se demorava no quarto, fazendo os últimos procedimentos na enferma. Sentiu que tudo escurecia a sua volta. Não conseguia entender a própria reação. Sempre sentira a mãe distante e por isso ela não lhe fazia falta alguma, não tinha vontade de vê-la, de encontrá-la, e nos últimos tempos a compaixão que sentia seria suficiente para causar-lhe tal desconforto diante da notícia da morte iminente?

O panorama espiritual ali, contudo apresentava-se diferente. Leontina, com os laços de vinculação ao corpo em processo de desfazimento e já em estado avançado de perturbação, percebeu a conversa e num último esforço, reagiu com revolta, lançando o seu pensamento de inconformidade na direção do filho.

- Não me deixe morrer, eu não quero morrer! Eu tenho dinheiro, chame os melhores médicos, leve-me para um hospital no exterior! Não, não me deixe morrer, Jean, você não pode fazer isso comigo.

Jean registrou a onda de sentimentos que lhe foi endereçada pela mãe, antes que a moribunda adentrasse o processo doloroso da morte física. Embora a operação já deflagrada pela enfermidade que lhe consumiu o tônus vital, ela não conseguira aproveitar o ensejo para cultivar melhores propósitos, senão apenas aumentando o índice de rebeldia ante as soberanas leis divinas.

- Não sei o que aconteceu comigo. Desculpem-me! Justificou-se Jean tão logo se refez.

Emília chorava, contemplando a agonia de Leontina e penalizada identificava que a última ação dela para com o filho fora a recriminação, a ordem, a revolta, nem um gesto, nem um olhar, nem uma palavra de reconciliação.

Deboni aproximou-se e com extremo carinho foi ponderando questões importantes:

- Emília, não avalies o momento desta forma. Veja, ele está aqui! Observe o seu olhar próximo ao leito de morte da mãe, é como uma semente tateando na escuridão da cova; o arrependimento está golpeando a dureza do solo do coração para aflorar.

- Lembra-te que Jean é o filho que tiveste com o Conde de Saint Clement; foi esse Espírito imortal quem assistiu o teu sofrimento, as traições que te humilharam, e que renasceu para ser cuidado por Margot e pelo próprio pai, sob o teu olhar amoroso, porque na espiritualidade tornou-se um perseguidor implacável daquele que julgava ter sido a causa das dores e da tristeza que vitimou a sua mãe, a Condessa.

Emília aproximou-se do rapaz, afagando-lhe os cabelos, e ele registrou-lhe a presença e experimentou bem-estar, uma onda de calor que se espalhou pela região do plexo cardíaco, levando-o, timidamente, a segurar a mão magra e coberta de hematomas de Leontina. Enquanto a contemplava, um suspiro exalou-se do peito, dando início a uma avalanche de lágrimas contidas há tantos anos naquele coração ressequido pela falta de amor.

- Deboni, querido irmão, como será o despertar de Leontina? Essa irresignação com a morte vai ampliar o período de perturbação? E a situação de Jean, se tomar a decisão de não submetê-la a tratamentos para prolongar a vida? Não sofrerá perseguições e ataques do Espírito desencarnado?

- Cara irmã Emília, compreenda que a proposta do médico não é de antecipar a morte, que seria a prática da eutanásia e que, do ponto de vista espiritual, privaria essa alma de preciosos minutos na experiência carnal, mas ele é um profissional espiritualizado e recomenda que se evite a distanásia, que é o prolongamento do processo de morrer, um sofrimento infrutífero, inútil para aplicação de tratamentos e métodos de manutenção artificial da vida sem qualquer utilidade. Aqui, o que se realizará é o que se denomina ortotanásia, o morrer com dignidade, sem dor, assistida pelo seu familiar, cercada de todos os cuidados que a enfermagem e a medicina humanizadas concedem aos pacientes terminais.

Deboni acionou uma tela fluídica que se estendeu horizontalmente sobre o leito de Leontina, onde se reproduzia o seu corpo físico em cores que permitiam ver a circulação sanguínea e os órgãos em atividade, assim como a circulação das energias perispirituais.

- Aqui, indicou ele, apontando para a região do encéfalo, pode-se verificar o efeito do esgotamento da atividade cerebral. As células emitem fraquíssimas cintilações, qual se fossem diminutos focos de luz se apagando, e regiões onde apenas a atividade do corpo sutil se mantém, no aguardo dos momentos de transformação das funções que se darão no processo da desencarnação.

Jean permanecia segurando a mão da mãe, enquanto a emotividade, em catarse, fluia como se fosse uma transfusão de energias, eflúvios de compaixão misturados a uma onda de culpa, de arrependimento pelo tempo desperdiçado, desejo de pedir perdão, enfim uma amálgama de sentimentos que os atendentes espirituais recolhiam e elaboravam com o mecanismo de suas mentes treinadas para que a enferma recebesse os curativos fluídicos no auxílio à transição para o plano espiritual.

- Quanto à atitude de Leontina ao despertar, continuou Deboni, será, como em todos os casos, uma escolha que a conduzirá mais depressa pela senda do progresso ou que a manterá estacionária, recolhendo as benesses da dor que é a mestra atenta aos que olvidam os recursos do amor que redime.


Referência: [1] KARDEC, Allan. Tradução de Ribeiro, Guillon. O Evangelho segundo o Espiritismo. FEB - Federação Espírita Brasileira. Edição do Kindle. “Cap. V”, item 28.

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