Fraternidade - cap. 5
Não será de temer que o Espiritismo não consiga vencer a indiferença dos homens e o seu apego às coisas materiais? “Seria conhecer bem pouco os homens imaginar que uma causa qualquer pudesse transformá-los como que por encanto. As ideias se modificam pouco a pouco, conforme os indivíduos, e é preciso que passem algumas gerações para que se apaguem completamente os vestígios dos velhos hábitos. A transformação, portanto, só poderá operar-se com o tempo, gradualmente e de modo progressivo. A cada geração, uma parte do véu se dissipa. O Espiritismo vem rasgá-lo inteiramente. Entretanto, mesmo que só conseguisse corrigir um único defeito do homem, já lhe teria feito dar um passo e, por isso mesmo, produzido um grande bem, pois esse primeiro passo lhe tornará mais fácil os outros.”[1]
A ambiência do centro espírita estava saturada pelos fluidos curativos e consoladores a facultarem o acolhimento das almas que para ali acorriam nos dois planos da vida. A princípio, Telêmaco ficou um pouco desconcertado pelo tratamento cordial recebido, sem atribuírem qualquer destaque a sua presença, tal como estava habituado nos locais onde frequentava antes e até depois do insucesso dos negócios, pois mantinha o nome de família respeitada na cidade. Identificava no local a presença de pessoas simples, vestidas pobremente e outros como ele, guardando aparência bem cuidada, todos sendo acolhidos com a mesma alegria e gentileza. Aos poucos foi relaxando as tensões e sentindo paz e serenidade naquele lugar. Era estranho. Não se percebia assim há muito tempo, na verdade, achava que nunca mesmo. A palestra da noite versava sobre provas da riqueza e da miséria.
- Jorge, você os avisou que eu viria. Eles falavam olhando pra mim e sabiam tudo da minha vida, entabulou a pergunta tão logo encerrou a palestra e tomaram o caminho de casa.
Jorge Antonio sorriu e passou o braço pelo ombro de Telêmaco.
- Não, amigo! Mas “eles” - apontando para cima – sabiam. Há um grupo de almas amigas a cuidar de nós e aproveitam esses momentos para ensinar aquilo que precisamos aprender.
- Isso é muito estranho. Fiquei preocupado. Eles me conhecem? Sabem dos meus pensamentos, também?
- Se forem teus adversários, espíritos inferiores a se afinizarem com os maus pendores podem identificar algumas das tuas ideias, como por exemplo, essa de suicídio a transitar na tua mente por vezes.
- E o que eu faço?
- Isso é fácil. Pensa em coisas ligadas ao bem, ao belo, ao útil e vais atrair e perceber os Espíritos bons a velarem por ti.
- Deixa disso. Eu não quero ver Espírito nem ouvir, nem... Nada.
- Acalma-te! Estou falando de outro tipo de atração. Todos nós captamos ondas mentais e elas produzem impressões, suscitam emoções, só isso.
Telêmaco era um incrédulo e mesclava vários motivos para refutar os postulados espíritas. Queria auxílio, mas não tinha disposição de mudar. Afeiçoado às ideias de supremacia sobre os demais, acreditava mesmo que voltaria a ter fortuna e assim todas as suas dificuldades sumiriam como por encanto. Também, acostumado a exigir o acontecimento das coisas como e onde desejava, não era incomum se demorasse em discussões improdutivas, questionando o porquê elas ocorriam ou não, porque esses ou aqueles fenômenos aconteciam com alguns e não com outros, principalmente, porque seu pai nunca viera ter com ele nessas horas de aperto e perdas sofridas. Mal sabia ele o quanto o pai se desdobrava em prover-lhe a ajuda, e ele sequer percebia.
Jorge era paciente e ouvia, às vezes calado, doutras fazendo alguma argumentação com o amigo, entendendo não nos caber aferir o tempo de cada um, sabia ele que o caminho rumo à verdade se delonga pelas escolhas, pela revolta e pela vontade frágil de cada criatura. Confiava na lei divina, esse mecanismo sábio e infalível para o aprimoramento espiritual do ser.
Assim os anos foram se passando. Telêmaco sentia uma atração pelo estudo do Espiritismo e embora se demorasse a implementar na vida os conteúdos do conhecimento adquirido, foi se inquietando com certas posturas ainda próprias do seu comportamento. Descobriu, dentre as habilidades que trazia, o gosto pela arte da marcenaria. Desde criança, junto com o avô, o fundador da fábrica da família, iniciada em modesta oficina, ficava horas a fio a recortar a madeira, desenhar modelos. Se tivesse prosseguido naquelas atividades, quem sabe teria sido um homem melhor, pensava. O desejo da mãe de vê-lo formado, estudando em colégios caros, o levou a uma profissão que hoje sabia não ser a sua vocação.
Quando adentrou pela primeira vez a pequena marcenaria, onde ensinavam os jovens assistidos pelo centro espírita, algo despertou dentro dele. Iniciou prestando auxílio na aprendizagem dos rapazes e moças ali atendidos e descobriu um ofício para a subsistência da família. Buscou um emprego de auxiliar em uma fábrica familiar pequena e revelou logo o seu talento para a atividade, recebendo do proprietário, em pouco tempo, a oferta para uma sociedade. Diante da proposta, pensou, refletiu bastante e decidiu não aceitar mais nada que lembrasse a sua trajetória acidentada nas lides de administração. Sociedade, lucros, nada disso. Conversou com o dono da marcenaria e pediu para ele verificar outra forma de valorizar o seu trabalho. Ele sentia-se bem assim, estava empregado, fazendo o que gostava e isso era tudo. Somente um pouco mais de dinheiro para as despesas da casa já seria o suficiente.
Quando contou isso para Jorge Antonio, o amigo disfarçou para esconder as lágrimas. Não era possível! Não estava ouvindo aquilo! Quantas vezes pensou em quando e como Telêmaco iria finalmente compreender o significado da vida, deixar as discussões estéreis de lado, os questionamentos impróprios? Pois percebia agora que os caminhos percorridos pela mensagem de Jesus nos corações humanos são muito diferentes e palmilham a sensibilidade de cada pessoa, da maneira que lhe é mais benéfica.
Jorge foi sentindo uma pontinha de vergonha pelos seus julgamentos. Polêmico, controverso e falastrão, Telêmaco demonstrava, mesmo assim, pelas ações e decisões tomadas haver aprendido, talvez mais do que ele, Jorge. Num impulso abraçou o companheiro de lides espírita, engasgando as palavras.
- Eh, o que é isso cara? Achei que tu ias ficar feliz com a minha decisão.
- Mas eu fiquei, Telêmaco. Tu não sabes como. Eu não imaginava teres tamanha força para isso!
- Mas não te empolgues muito. Eu só estou evitando confusão para mim. Não quero mais me envolver com certas coisas.
A luta para não admitir a mudança era visível. Telêmaco reproduzia as posturas de muitas criaturas que não contabilizam o resultado dos seus esforços e as vitórias conquistadas, detendo-se nas carências, no não possuir, no que ainda não superaram, abdicando do autoamor e do reconhecimento das suas potencialidades.
- Meu amigo olha para trás e verifica o avanço que tiveste. O quanto cresceste, o quanto o desapego das coisas materiais se aprofundou na tua compreensão, Telêmaco. Valoriza isso. O moço arrogante, cheio de si, com um nível de sono consciencial profundo é hoje alguém com outros valores, outra prioridade na vida.
Ouvindo a fala de Jorge Antonio, nem sabia explicar o porquê, mas uma emoção intensa foi tomando conta do antigo empresário orgulhoso. Tomás Flores que estava afastado da ambiência do filho por algum tempo, recebeu um chamado dos benfeitores que o tinham sob seus cuidados para que pudesse compartilhar daquele instante, que só os olhos da alma podem, verdadeiramente, perceber a grandeza. As lágrimas do pai fizeram aflorar as do filho e pela primeira vez, ele fez uma catarse verdadeira.
- Jorge, eu ainda tenho muita vergonha da minha condição. Sinto-me, até hoje, sem forças para pedir perdão a minha mulher e aos meus filhos, a quem impus uma vida cheia de privações. Guardo em mim uma dor não reconhecida, nem para eu mesmo. Se um dia eu pudesse confessar-lhes a minha incompetência, a condição de homem que não soube sequer conservar a herança recebida, eu acho que tiraria um espinho cravado a fazer sangrar a minha alma.
Jorge Antonio estava surpreso com o rompimento das barreiras emocionais do amigo, mas sabia ser um momento crucial para aquele Espírito e respirou fundo, buscando a inspiração que tivesse a essência do consolo, mas também da orientação necessária, enquanto recolhia as palavras, uma a uma, como se estivesse juntando pérolas preciosas da sensibilidade de Telêmaco.
Referência: [1] Kardec, Allan. O livro dos espíritos (p. 418). FEB Publisher. Edição do Kindle.
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