A coragem para ser bom - cap. 2
O primeiro ímpeto de Ramão foi atirar e fugir, mas algo o deteve, como se uma voz lhe confidenciasse para não fazer isso, pois talvez o auxílio necessário estivesse ali. Virou-se para Demétrio e espalmou a mão no ar, pedindo para se manter escondido, pois os demais já haviam ganhado o mato. Encaminhou-se para a porta com os braços erguidos, aproximando-se do recém chegado, que levou a mão à cintura e sacou do revólver.
- Pare onde está. Nem mais um passo.
- Por favor, senhor. Estou faminto, ferido, me ajude.
- O interlocutor buscou a chave para acionar a luz no interior do lugar e quando a claridade se fez, a visão foi de um homem esfarrapado, arranhado por espinhos, roupas molhadas, embarradas, tiritando de frio.
- Quem você é? De onde vem?
Ramão viveu, nesse momento, o maior dilema de sua vida. Se falasse poderia comprometer a sua vida e a de Demétrio, ainda abrigado ali, se não falasse também poderia ser morto, confundido com um assaltante, um malfeitor. Pensou um pouco e decidiu confiar em Deus, Ele o ajudaria, se a sua vida valesse para salvar a dos companheiros de infortúnio já estava de bom tamanho. Ganharia tempo.
- Fugi de um lugar próximo daqui senhor, estava sendo maltratado, mantido em regime de trabalho igual à escravidão. Por favor, me ajude, eu vou morrer. Disse isso e sentiu as forças lhe faltarem, caiu de joelhos e quando deu por si, já estava alojado em uma cadeira e coberto por uma manta grossa de lã.
- Agora você pode me contar essa história, direito – falou o homem a encará-lo com firmeza.
Era sem dúvida uma intervenção divina para ele e seus companheiros. Aquele era um homem bom, sentia isso. Acomodou-o em uma dependência próxima à cozinha da fazenda, pelo que pode perceber e ofereceu-lhe uma caneca com leite e um pedaço de pão.
O anfitrião olhava intrigado para Ramão, deu-lhe algumas roupas limpas e mostrou-lhe um lugar onde poderia fazer uma higiene.
Ao ouvir a primeira frase dita por Ramão, Nivaldo já soube do que se tratava. Há tempos ouvia falar das atividades com mão-de-obra análoga à escravidão nas redondezas, mas não conseguia evidências para uma avaliação efetiva do que realmente ocorria.
Retomada a conversa, Ramão voltava a confidenciar a Nivaldo as lutas travadas até ali.
- Sou do interior do Piauí, senhor.
- Notei pelo teu jeito de falar. Veio em busca de trabalho não é?
- Sim, a vida está muito difícil na minha terra, muita fome, dificuldade, mas não pensei que ia me dar tão mal.
- Aqui tem chances boas de trabalho decente, moço. Nem todo mundo é como essa gente que te explora. São criminosos e isso tem em todo o lugar. Mas vamos ver o que fazer. Podes ficar escondido aqui, até decidirmos o que fazer, concluiu Nivaldo, ajeitando os cabelos para trás, num gesto de preocupação.
Estavam estendendo o assunto, quando o barulho de motores se intensificou e uma algazarra de vozes e sons de veículos estacionando se fizeram ouvir.
Ramão, instintivamente, correu para a porta do galpão.
Muitas coisas passaram pela sua mente naquele instante, em um atropelo de imagens as cenas da sua vida, como em um filme, iam se reproduzindo. Tinha muita dificuldade em confiar nas pessoas, desde menino quando era abusado pelo pai, explorado, tinha o sentimento de menos valia, achava não merecer mesmo, de quem quer que fosse, atenção, confiança e cuidados. Isso voltou com força ao se sentir acuado.
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