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A coragem para ser bom - cap. 14




O lugar era semidesértico, a vegetação característica do sertão e o sol escaldante davam conta das lutas intensas sustentadas pelas almas ali renascidas. De longe em longe, viam-se os casebres pequenos, onde pessoas com as faces e corpos marcados pela miséria espiavam o carro a levantar poeira no solo calcinado pela seca.

Nonô tagarelava sem parar. No seu sotaque característico ia contando a Nivaldo as agruras daquele povo, os fatos dele conhecidos sobre a família de Ramão, e se entusiasmava com a atenção recebida do interlocutor, pois não eram muitos que estimulavam aquela prosa recheada de tragédias e dores.

O velho carro foi o único transporte encontrado por Nivaldo para acessar o lugar e aquele homem conhecia as redondezas e seus moradores.

- A dona Santinha faz tempo não vem pra essas bandas. Sempre aparecia pra pegar comida e ficou até me devendo uns dinheiros, mas eu nunca deixei de entregar o que ela pedia, a pobre. Tinha aquele menino doente que a mãe deixou pra trás. Eu falei pro Ramão não ir embora pro sul, muito longe, achei uma loucura, mas ele tava desesperado, queria uma vida melhor pra eles. Parece que conseguiu não é?

Nivaldo sacudiu a cabeça em tom de assentimento para não esticar o assunto e deu um sorriso amarelo enquanto pensava “ teve sorte sim, você não imagina quanta.”

- Fica ali depois daquela curva, atrás daquela chapada, tem uma ribanceira, sabe? – apontava Nonô, enquanto foi diminuindo a marcha do carro.

Saltamos, descemos o morrete e logo avistamos o casebre. Nenhum movimento, a porta com uma tira de couro amarrada, nenhum bicho no entorno. Nonô foi se achegando e começou a gritar: - dona Santinha, dona Santinha, a sora ta aí? Só o eco respondia o chamado. Tentamos a porta, as janelas, sem êxito. Pelas frestas das paredes olhamos para dentro e via-se que estava vazia.

- Diacho! Onde essa velha foi?

A testa franzida pelo sol, as mãos na cintura, Nonô foi olhando em torno até que saiu em desabalada carreira rumo a uma descida no lado da casa - Ali, ali – não entendi, mas fui atrás dele.

Era uma cruz tosca, feita com duas varas amarradas com um pedaço de pano, um paninho desbotado, já devia fazer algum tempo que estava ao sol, mas via-se a cor azul.

- É o menino, deve ser o menino, pela cor da fita na cruz – dizia Nonô, enquanto caminhava na volta e vendo que era uma cova pequena, ajuizou: – deve ter sido cavada pela própria avó; vê essas pedras em cima? Se põe quando é cova rasa, pra não ser remexida pelos bichos.

Nivaldo não sabia o que pensar. Enquanto o companheiro continuava a falar sem parar, tecendo conjecturas sobre o acontecido, ele retirou o chapéu respeitosamente e começou a balbuciar uma prece, buscando entender os desígnios divinos diante daquele quadro que, aparentemente, era só dor e tragédia.

- Mais algum lugar onde se possa saber alguma informação de dona Santinha?

Nonô fez uma careta como se estivesse forçando a mente a raciocinar, “huum chovê”, sim, sim, sim, sim, mais pra frente tem um povoado e uma igreja que dá assistência a esse pobrerio aqui.

O povoado era um amontoado de choupanas paupérrimas e uma igrejinha onde fomos recebidos por um padre de ar bonachão que nos convidou a entrar e tomar água, um refrigério debaixo daquele sol abrasador.

Confirmamos com o Padre Antão a morte do pequeno filho de Ramão, mas de dona Santinha não tinham notícias.

- Dizem, mas isso dizem, sô Nonô, que viram ela andando no meio da caatinga tempo desses, falando coisas sem nexo, mas esse povo fala muito. Ela sempre vinha aqui, quando estava precisada de reza, mas desde que o menino morreu não veio mais. Fui lá depois e já não achei ela, pensei que tinha ido pros lados de lá.

- Foi não, Padre Antão, pra lá também não apareceu, retrucou Nonô.

.........

No retorno, Nivaldo vinha no avião ruminando a história triste que imaginava deixar para trás. Que dores teria enfrentando aquela avó, que suplícios o pequenino experimentara antes da desencarnação? Onde estará a mãe de Ramão? O que mais o afligia era voltar sem respostas para dar aquele coração aflito.

As lágrimas rolaram doídas pelo rosto daquele homem, afeito a tantas lutas e sempre desafiado a compreender a vontade de Deus e os caminhos da evolução ofertados a cada criatura. Ao partir para o Piauí levava a esperança de encontrar a mãe e o filho de Ramão, pensava até em trazê-los juntos, poder assistir de alguma maneira as necessidades de ambos, pois era assim que funcionava a sua sensibilidade, mas agora voltava de mãos vazias, de coração apertado. Abriu o zíper da mochila e retirou o Evangelho segundo o Espiritismo, fechou os olhos, respirou fundo e rogou a Deus entendimento para aqueles instantes tão difíceis, abrindo o livro na página lida tantas vezes e sempre oportuna:

Motivos de resignação. Por estas palavras: Bem-aventurados os aflitos, pois que serão consolados, Jesus aponta a compensação que hão de ter os que sofrem e a resignação que leva o padecente a bendizer do sofrimento, como prelúdio da cura. Também podem essas palavras ser traduzidas assim: Deveis considerar-vos felizes por sofrerdes, visto que as dores deste mundo são o pagamento da dívida que as vossas passadas faltas vos fizeram contrair; suportadas pacientemente na Terra, essas dores vos poupam séculos de sofrimentos na vida futura.[1]


Quando o avião pousou, antes de apanhar o carro para retomar a viagem para o interior, Nivaldo adquiriu um exemplar do Evangelho e pensou na melhor notícia que poderia dar a Ramão, após as informações dolorosas a serem com ele compartilhadas.


Referência:

[1] Allan Kardec. O evangelho segundo o espiritismo (Portuguese Edition) (p. 96). FEB Publisher. Edição do Kindle.


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