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Oportunidade Bendita - Siá Tonha cap. XX


“Amar os inimigos não é, portanto, ter-lhes uma afeição que não está na natureza, visto que o contacto de um inimigo nos faz bater o coração de modo muito diverso do seu bater, ao contacto de um amigo. Amar os inimigos é não lhes guardar ódio, nem rancor, nem desejos de vingança; é perdoar-lhes, sem pensamento oculto e sem condições, o mal que nos causem; é não opor nenhum obstáculo à reconciliação com eles; é desejar-lhes o bem e não o mal; é experimentar júbilo, em vez de pesar, com o bem que lhes advenha; é socorrê-los, em se apresentando ocasião; é abster-se, quer por palavras, quer por atos, de tudo o que os possa prejudicar; é, finalmente, retribuir-lhes sempre o mal com o bem, sem a intenção de os humilhar. Quem assim procede preenche as condições do mandamento: Amai os vossos inimigos.” o evangelho segundo o espiritismo, cap. XII. item 3.



Anacleto recuperou-se e voltou ao seu abrigo sob a ponte, onde recebia, semanalmente, a visita de Alírio que passou a administrar-lhe medicação contínua, o que transformou radicalmente o ânimo e o humor daquele homem.


Alguns meses se passaram e o ex-mendigo passou a fazer pequenos trabalhos que a vizinhança ofertava. Realizava-os com tal dedicação que começou a se tornar um auxiliar procurado para limpeza de pátios, calçadas e outros afazeres simples, o que possibilitou-lhe a mudança para uma modesta pensão de subúrbio, onde readquiriu a dignidade humana, recuperando a autoestima.


Siá Tonha acompanhava e inspirava o bom médico que continuava tratando de Anacleto, mantendo assim o equilíbrio mental do novo amigo que granjeara e que com o tempo reservava as manhãs de domingo para acompanhá-lo nas andanças assistenciais aos excluídos da rua.


Os muitos anos de infortúnio e a convivência com todo o tipo de mazelas que compõem a realidade dos sem-teto, “sem-tudo”, deram-lhe sensibilidade apurada para ler, com muita facilidade e perceber em profundidade os dramas que se escondem sob a capa da agressividade, da indiferença, da ironia, do desespero exteriorizados por muitos.


O médico teve sua ação facilitada com aquela companhia conquistada com o seu dedicado trabalho.


Por vezes a peregrinação benemérita adiantava-se pelas primeiras horas da tarde, quando se detinham para uma rápida refeição, momentos em que se estendiam em conversação agradável, franca. Alírio contava da sua vida e buscava vencer o silêncio de Anacleto sobre o seu passado.


Percebia que o amigo tinha dores profundas que não queria, ainda, compartilhar com ele.


Certo dia aproximavam-se de uma proteção improvisada com trapos e papelões, do meio da qual uma voz muito débil exalava gemidos misturados à respiração arquejante.


Com muito cuidado, foram removendo um dos panos para acessar a criatura necessitada.


Era uma mulher muito magra, os cabelos grisalhos, que tremia de febre e frio e dava mostras de uma dificuldade extrema de respirar. Junto dela um viralatas encostava-se ao corpo da dona, como querendo protegê-la ou aquecê-la.


Anacleto afagou a cabeça do cão que alongou os olhos súplices, parecendo agradecer a intervenção e a chegada do socorro. Alírio, adiantando-se saudou a enferma.


- Bom dia, deixe-nos ajudá-la. Sou médico, meu nome é Alírio e o seu?


A mulher abriu os olhos fundos e com muito esforço balbuciou:


- Por favor, não me deixe morrer. Meu nome é Lucélia.


Anacleto sentiu como se um raio o tivesse atingido.


Ergueu-se e recuou bruscamente largando os papelões sobre a enferma.


Alírio percebeu o choque que o amigo experimentara, mas continuou o atendimento removendo as proteções para que Lucélia respirasse melhor.


Naquele momento era o que se fazia urgente.


Tudo levava a crer que se tratava de uma pneumonia com febre alta, tosse e apnéia. Era necessária a remoção da enferma, o que o facultativo providenciou, interceptando um carro de aluguel que passava e que a contragosto recolheu ambos levando-os até a Santa Casa.


....


Alírio se preparava para a costumeira visita hebdomadária aos necessitados das ruas, seus pacientes das manhãs de domingo.


Pensava em Anacleto. Desde o dia em que se depararam com a enferma que agonizava em meio a trapos e que ela declinara o nome, decorrera quase um mês sem notícias do companheiro de peregrinações socorristas.


Buscara-o no pequeno quarto de pensão onde se abrigava, sem lograr encontrá-lo. Dissera-lhe a hospedeira que deixara seus pertences e pagara o mês, mas não voltara. Entendera que ali estava um drama que deveria ter marcado profundamente aquela criatura.


Voltou ao hospital para rever a enferma e obter algum indício sobre o que poderia ter dado causa à perturbação de Anacleto, mas ela já tivera alta e não retornara ao local onde a tinham encontrado.


Passava o café, aspirando o perfume, sorvendo antecipadamente o gostoso líquido, quando uma batida muito leve, apenas perceptível para o seu ouvido afeito à identificação de sons internos do organismo, treinado no exercício de fazer exames físicos nas ruas sem auxílio de equipamentos. Algo dizia ao seu coração que era Anacleto. Foi até a porta da rua e realmente ali parado, cabisbaixo, abatido estava o seu amigo.


- Anacleto, por onde você anda, meu amigo?


- Fugindo, doutor, fugindo.


- Mas de quem? Ou de quê? Por que não me procuraste?


- O passado, doutor, o passado! Ele sempre volta e dói muito quando os fantasmas da vida surgem a nossa frente.


- A mulher? perguntei evitando pronunciar o nome que lhe causou tanto pavor.


- O senhor viu? O senhor sabe? O que foi que ela lhe falou?


- Não sei de nada, mas achei que poderia ter alguma relação com o seu sumiço, pois você praticamente evaporou dali em segundos.


- Ah! Anacleto suspirou profundamente, o senhor nem pode imaginar.


- Entre, meu amigo, vamos tomar um café. Hoje podemos sair mais tarde, O meu atendimento urgente é para você. O recém chegado meneou a cabeça . Estava sujo, pois tinha voltado a perambular pelas ruas, desnorteado. Sabia que cheirava mal, não queria impor a sua presença desagradável ao amigo.


- Anacleto! Se você não entrar vou ficar triste. Tanto tempo! Eu tenho saudades das nossas conversas. Tenho roupas limpas, quem sabe você toma um banho e depois sentamos para uma boa prosa?


Timidamente, amparado por Siá Tonha que lhe inspirava docilidade ante o convite do amigo, o mendigo esboçou um sorriso.


- Vou fazer a volta. E antes que Alírio se opusesse ganhou o acesso ao fundo do imóvel onde estava o banheiro que costumava usar quando auxiliava nas tarefas de limpeza do pátio e das calçadas daquela casa.


Alírio sorriu agradecido pelo retorno daquela alma que já lhe era tão cara.


O sol estava com um brilho sem igual na manhã de inverno, derretendo o sereno das folhas, enquanto os pássaros espiavam dos ninhos, ensaiando os primeiros vôos da manhã.









































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