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Siá Tonha - cap. XIV


À luz meridiana de um entardecer na colônia, sorvendo o perfume das flores que margeavam os caminhos desenhados de forma primorosa, Sepé e Antonia caminhavam, enquanto travavam um profundo diálogo sobre as vivências que foram oportunizadas àquela alma no seu regresso ao lar verdadeiro.

Antonia emocionava-se ao recordar as cenas da sua romagem terrena no corpo deformado, com vida quase vegetativa, cuidado com tanta devoção pela mãe índia que transpusera as barreiras da cultura que sacrificava os deficientes, para deixá-la viver enclausurada fisicamente e rever as suas atitudes nefastas de outras existências.

- Mas ainda não compreendo, amigo, como na personalidade de Antonia vivi sem as angústias da posse, do poder?

- Por quais misteriosos caminhos, a ambição de Eugênia se escoou?

-Tal como as pequenas fagulhas que ateiam fogo a uma floresta e se transformam em incêndios devastadores, as forças da alma promovem transformações imensas na direção que o Espírito imortal lhe imprime, ponderava Sepé.

- Antonia é o terreno preparado após a extinção da grade queimada provocada por Eugênia no solo da própria alma.

- Lembra-te, minha filha, das queimadas nos campos do Coronel Hilário, provocadas pelos peões para limpar o mato? A terra enegrecida, após a primeira chuva começava a pintar-se de verde. A relva brotava com força, devolvendo o vigor ao solo que era então preparado para o plantio de nova lavoura.

- Siá Tonha tinha um brilho diferente nos olhos. A comparação feita por Sepé acordava em sua alma as lembranças dos campos onde vivera e a vontade de voltar se intensificou.

- Benfeitor amigo! Nunca mais quero viver na riqueza. Intercede por mim para que eu volte a amparar os desassistidos do mundo. Antonia ajoelhou-se e beijava as mãos do venerando amigo, orvalhando-a com as lágrimas que rolavam copiosas.

Sepé pousou a mão no ombro da sua pupila e estacou o passo.

- Nós somos feitos para a plenitude, afirmou. Um grande apóstolo do Mestre Jesus disse, certa feita, que devemos ser fiéis no muito e no pouco¹. Fostes fiel no pouco, mas precisas aprender a distribuir e transformar o muito em felicidade para todos.

Assim como não podemos viver somente na sombra, mas também na luz, devemos transitar nas estradas da riqueza com a mesma desenvoltura e honradez com que as percorremos na pobreza.

Antonia não se conformava. As visões de Eugênia avivaram-lhe um medo intenso, uma angústia como se muitos perigos estivessem a rondá-la.

Sepé percebeu que ela estava com um nível de insegurança extrema para que se decidisse a preparar um retorno à Terra nas provações da riqueza.

As lágrimas de Antonia jorravam em abundância e as súplicas para o retorno nas mesmas condições de vida que tivera se repetiam com insistência.

Sepé lembrava da sua condição. Do apreço que tinha pela aparência perispiritual que guardava os traços dos guaranis a quem amara tanto e aos quais muito devia. Também suplicara para manter-se assim por algum tempo e com isso ampliara a sua permanência na espiritualidade, desempenhando muitas tarefas até que o Senhor da Vinha o chame para um novo mergulho na carne.

Pensou que Antonia tinha muito méritos granjeados e era o momento de interceder por ela junto à veneranda irmã Teresa para que lhe oportunizasse um planejamento reencarnatório consentâneo com os anseios de sua protegida.

- Está bem, Antonia. Vamos levar aos nossos benfeitores maiores o teu pedido e aguardemos com fé os desígnios do Alto para a tua trajetória.

A simples menção de uma possibilidade de renascimento fora do ambiente da riqueza já acalmaram Antonia, trazendo-lhe à face um tímido sorriso. Ela segurou firme as mãos de Sepé e reclinou a fronte ensaiando beijar-lhe a destra que, com delicadeza, mas de forma decidida, ele retirou, dizendo:

- Agora tenho que partir. Aproveite a sua estadia aqui. Aprenda! Observe tudo e reflita sobre o que conversamos. Quando eu obtiver resposta voltaremos a nos falar.

Antonia fiou ali olhando o amigo que se afastava e percebeu, pela primeira vez, que ao andar Sepé deixava um rastro de luz que era absorvido pela vegetação ambiente, conferindo-lhe ainda mais brilho e beleza.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

1 Lucas 16:10

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