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Siá Tonha - cap. IV


OS TEXTOS AQUI PUBLICADOS TEM SEUS DIREITOS AUTORAIS

INTEGRALMENTE CEDIDOS À FEDERAÇÃO ESPÍRITA DO RIO GRANDE DO SUL.

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Começou pela parte IV? Leia os capítulos em sequencia:

Uma pequena multidão se apinhava no terreiro da fazenda, pois a notícia de que Siá Tonha morrera e que seria velada ali na capela da estância do Cel. Hilário se espalhara pelos recantos mais longínquos da região. Chegavam carroças cheias de gente, pequenos grupos a pé, a cavalo, do jeito que podiam, vencendo a distância para o momento de despedida, tão doído para aquelas criaturas simples. Naquelas grotas ermas, de tão parcos recursos, a morta era quase uma santa para as pessoas que enfrentavam uma vida duríssima por escolha própria ou por imposição das soberanas leis divinas, a fim de que cada qual tivesse a oportunidade de reparação das faltas cometidas ou de preparar-se para futuros cometimentos na senda da redenção.

Era uma cena incomum. As rezas se elevavam dos muitos grupos, que não cabiam na pequena nave da igrejinha, e iam desfiando os terços, rosários e ladainhas à sombra das grandes árvores ou reunidos em torno dos degraus da porta frontal, tentando espiar para dentro ou aproximarem-se do esquife.

De repente um fato silenciou o povo. Ninguém entendeu quando o Coronel Hilário passou em desabalada carreira, com os olhos revirados nas órbitas, com a saliva escorrendo pelos cantos da boca e sumiu no mato.

Nonato, já afeito a essas crises do patrão, montou a cavalo, apanhou as cordas que sabia serem necessárias para a contenção do possesso¹ e juntou mais dois peões que se aprestaram para ir ao encalço do homem.

Enquanto isso, na formosa capelinha erguida em devoção à Senhora Imaculada Conceição, o caixão de Siá Tonha estava rodeado por muitas flores silvestres e ervas do campo, trazidas pelos seus beneficiados espirituais que não paravam de chegar.

Dona Mariana mandara colocar uns círios bonitos nos candelabros que emolduravam a diminuta cripta. As luzes pareciam ganhar amplitude, desenhando formas no claro-escuro do ambiente, enquanto as filas se alternavam para que as pessoas pudessem fazer a sua homenagem final ao corpo que ali repousava das árduas lutas terrenas. Aqueles que tivessem a visão espiritual ampliada poderiam ver a figura iluminada, vestida com uma túnica vaporosa, andando entre os presentes a consolar, atender e tratar a cada um nas suas muitas necessidades.

Em certo momento, quando a movimentação se tornou menos intenso, aquela dama de luz abeirou-se do esquife, inclinando-se como se estivesse a murmurar algo, muito próxima ao rosto de Siá Tonha. Ocorreu ali um fato espiritual interessante: foi como se a morta tivesse um breve estremecimento e dela se desprendeu uma segunda silhueta, que pairou sobre os despojos e foi amparada pela entidade benfeitora.

Aquele anjo, se assim podemos nos expressar, carregou, ainda adormecido, o perispírito² de Antonia para fora da pequena capela.

...

A porta do rancho de Siá Tonha rangia tristemente, batida pelo vento da tarde que findava.

Os peões, homens valentes, mas escravos do misticismo rondavam a tapera sem coragem de entrar. Após muito procurarem pelo Coronel Hilário achavam que ele poderia estar lá dentro. No assim, ficara à espreita, Nonato, o capataz, dizia que o rangido da porta era choro de almas penadas e assim permaneceram, de longe, sem saber o que fazer.

Dona Mariana preocupada com a falta de notícias enviou mais alguns cavaleiros à procura de Hilário, Nonato e dos outros. Foi o mulato Antunes, conhecido pela valentia e até pelo deboche que fazia com “as coisas do outro mundo” – diziam que entrava à noite nos cemitérios para consumir as bebidas que à época era comum serem deixadas nos túmulos dos que em vida se regalava com elas – que alumiou o interior do rancho com um toco de vela e trouxe de lá o patrão desacordado, conduzindo-o para a fazenda.

O médico da família foi chamado e atestou a enfermidade grave. Daquele dia, em diante, Hilário nunca mais falou, nem andou. Parecia que a sua alma havia se ausentado. Apenas os olhos mortiços fitos no horizonte. Todos os tratamentos foram tentados, mas alguma coisa nele impedia uma recuperação mínima que fosse. O Coronel sentia, mas não podia expressar, todo o peso do remorso que o torturava.

Por vezes percebia os vultos que o cercavam e ainda ouvia os impropérios e ameaças, mas era como se estivesse preso em uma armadura férrea, tinha ânsias de correr, fugir, gritar, mas estava irremediavelmente preso na cadeira de rodas. Algumas convulsões que o acometiam eram os únicos sinais de que algo estava acontecendo.

Dona Mariana, nestas horas, lembrava de Siá Tonha e fazia suas preces até Hilário adormecer, porque as orações atenuavam o sofrimento e o ódio dos seus perseguidores.

Notas de rodapé:

¹Quando é mau o Espírito possessor, as coisas se passam de outro modo. Ele não toma moderadamente o corpo do encarnado, arrebata-o, se este não possui bastante força moral para lhe resistir. Fá-lo por maldade para com este, a quem tortura e martiriza de todas as formas, indo ao extremo de tentar exterminá-lo, já por estrangulação, já atirando-o ao fogo ou a outros lugares perigosos. Servindo-se dos órgãos e dos membros do infeliz paciente, blasfema, injuria e maltrata os que o cercam; entrega-se a excentricidades e a atos que apresentam todos os caracteres da loucura furiosa. São numerosos os fatos deste gênero, em diferentes graus de intensidade, e não derivam de outra causa muitos casos de loucura. Amiúde, há também desordens patológicas, que são meras consequências e contra as quais nada adiantam os tratamentos médicos, enquanto subsiste a causa originária. Dando a conhecer essa fonte donde provém uma parte das misérias humanas, o Espiritismo indica o remédio a ser aplicado: atuar sobre o autor do mal que, sendo um ser inteligente, deve ser tratado por meio da inteligência. * O livro dos médiuns - Obsessões e possessões. Cap. XIV, item 48.

²O Espírito, propriamente dito, nenhuma cobertura tem, ou, como pretendem alguns, está sempre envolto numa substância qualquer?

“Envolve-o uma substância, vaporosa para ti, mas ainda bastante grosseira para nós; assaz vaporosa, entretanto, para poder elevar-se na atmosfera e transportar-se aonde queira.”

Envolvendo o gérmen de um fruto, há o perisperma; do mesmo modo, um envoltório que, por comparação, se pode chamar perispírito, envolve o Espírito propriamente dito.

O livro dos Espíritos – FEB Editora. Perg. 93

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